terça-feira, 28 de dezembro de 2010

MEMÓRIAS de OUTRORA - III

(Continuação)
A viagem de regresso continuava a decorrer sem problemas devido em parte às enormes precauções que estavam a ser tomadas.
Os guerrilheiros espiavam todos os movimentos da tropa, escondidos na densa selva que nos rodeava e tinham observado a nossa viagem. Muito provavelmente como era hábito, iriam aproveitavar a viagem de regresso para nos atacarem emboscados, beneficiando da surpresa e da escuridão tenebrosa da noite
Ao aproximarmo-nos da curva da morte um local onde habitualmente montavam fatídicas emboscadas, todos os soldados saltaram das viaturas e prosseguiram a pé em fila indiana pelas duas bermas da picada
Repentinamente no silêncio da noite ouvem-se fortes rajadas de metralhadora vindas da frente da coluna.
Eu que seguia com o rádio às costas, atiro-me rapidamente para o chão, caindo numa enorme poça de água.
Numa impressionante tranquilidade o colega que seguia na minha pegada, baixa-se e grita-me.
- Levanta-te mike. Não tenhas medo, são os nossos a fazerem tiros de reconhecimento.
Levantei-me de um salto, ensopado em água e lama, assustado e envergonhado, contudo devido à escuridão os restantes camaradas não se aperceberam do meu estado.
Ultrapassada esta tenebrosa curva, subimos de novo para as viaturas e, então reparo num soldado que se encontrava deitado numa maca em cima de uma berliet, ardendo em febre e delirando acometido pelo paludismo. Então tirei o grande lenço que usávamos ao pescoço para nos proteger das nuvens de pó levantadas pelas viaturas, ensopei-o em água do cantil e passei-lhe pela testa. Quando deu acordo de si agradeceu-me dizendo que era conhecido por Azeiteiro e que tal como eu viera em rendição individual, tendo chegado há cerca de dois meses a este fim do mundo.
Continuei junto dele durante o resto da caminhada, repartindo consigo a água do meu cantil e oferecendo-me para ajudar no transporte da maca até à pequena enfermaria da base, onde o entregamos ao enfermeiro de serviço.
Na tarde do dia seguinte à nossa chegada a Nambu, fui visitá-lo à enfermaria para lhe levar um pouco de conforto e perguntar se necessitava de algum préstimo.
Tive dificuldade em reconhecê-lo, barbeado e sentado na cama a ler uma fotonovela. De imediato me começou a contar a sua história de vida. Os pais – ele estivador, ela mulher-a-dias – separaram-se era ele pequeno. Foi então viver com a avó, com quem acabaria por ser criado. Assim que terminou a 4ª classe começou a trabalhar numa mercearia na Ribeira do Porto. A partir desse primeiro emprego passou por vários, onde permanecia por pouco tempo. Ultimamente era porteiro de uma boite na Foz e dedicava-se a explorar prostitutas, daí a ser alcunhado entre os soldados que conheciam o seu passado por Azeiteiro, nome dado em calão aos chulos e proxenetas. Para confirmar o que me contava, puxou de uma pequena caixa de madeira que guardava debaixo da cama com dezenas de cartas e aerogramas recebidas da Metrópole.
Mostrou-me várias cartas de pelo menos três raparigas diferentes, afirmando.
- Estás a ver Mike. Geralmente vêm acompanhadas de uma nota de cem ou até de quinhentos escudos. Apenas a Ofélia não me envia dinheiro. Coitada!
- Coitada! Porquê? Perguntei intrigado.
- Presentemente encontra-se presa em Tires. Foi acusada de prostituição e de ter agredido com uma garrafa um cliente que por azar era polícia. Fugiu de Custóias, voltou a ser detida e apanhou dois anos de cadeia. Tantos como eu de Angola – e continuou – quando chegar á Metrópole caso-me com ela, que é a sua maior ambição.
(Continua)

sábado, 18 de dezembro de 2010

MEMÓRIAS DE OUTRORA - II

(Continuação)
Logo após a descarga do correio e de outros bens de primeira necessidade, já com o sol a esconder-se por detrás da linha de horizonte e o céu a matizar-se de belos tons de vermelho e dourado, demos inicio á arriscada viagem de regresso a Nambu.Este trajecto já de si repleto de vários perigos, adivinhava-se ainda mais medonho devido à perigosa e sempre incerta noite.
Para relatar esta tremenda caminhada socorro-me do belo poema do conhecido poeta e deputado Manuel Alegre.

As luzes de Nambuangongo


Brilham as luzes de Nambuangongo

que de longe parecem perto e perto

parecem longe porque são assim as luzes

nos olhos dos soldados quando à noite

vão de Quipedro a Nambuangongo



Não vás pensar que são as luzes da tua aldeia.

Não há lugar em Nambuangongo

para a ternura da tua aldeia.

Brilham na noite camarada são enganos

não vás pensar que são as luzes da tua aldeia.



Amigo escuta se acontecer

teres saudades fecha os teus olhos

não queiras ver as luzes que são longe e perto

e perto e longe não queiras ver

amigo as luzes de Nambuangongo.



Eu sei que custa. Dentro de ti

há outras luzes que são luzes de Nambuangongo.

E a bala espreita eu sei que custa

posso ser eu podes ser tu

entre Quipedro e Nambuangongo.



E há outras luzes noutros caminhos de outras aldeias.

Essas porém não são as luzes que nos esperam.

E não verás rostos amados. E não terás

um fogo ardendo para ti que vens de longe.

Ninguém lá onde brilham as luzes para ninguém.



Brilham na noite camarada e são enganos

ai são enganos essas luzes perto e longe.

Dentro de ti uma candeia. E não verás

rostos amados. Fecha os teus olhos camarada

são só as luzes de Nambuangongo.



Morrer podemos. Mas não chorar. Lágrimas?

Só essas lágrimas que ao longe brilham

lágrimas luzes de Nambuangongo. Choram por nós

brilham por nós mas são enganos camarada

não são as luzes da tua aldeia.


(Continua)....

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

MEMÓRIAS de OUTRÓRA

Capítulo I
Vou recuar no tempo. A um tempo longínquo e cruel de há muitos, muitos anos quando cheguei a Angola e a Nambuangongo, quartel militar situado no norte desse país a cerca de 180 km de Luanda.Aí chegado tive um pesadelo, ou melhor uma alucinação muito contundente e, é essa amarga alucinação que vou passar á escrita como obra de ficção. Portanto factos, pessoas e mesmo situações narradas não existiram nem sequer aconteceram, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
 Nambuangongo era uma fortaleza militar em pé de guerra, espraiava-se por dois grandes morros com tropa de varias especialidades. Eu fora integrado como soldado de transmissões numa companhia operacional com o nome de guerra “ Os Carolas “. As operações que decorriam na selva eram da nossa responsabilidade.
Como acontecia na maioria das inúmeras bases do exército Português espalhadas pela imensidão da selva Angolana, os soldados encontravam-se instalados em barracas de madeira cobertas por chapas de ferro zincadas, onde suportavam o intenso calor Africano e, aí vegetavam em situação degradante completamente isolados da civilização e dos seus meios de conforto.
Dentro da grande cerca de arame farpado, alem do bar dos soldados também existiam duas cantinas civis onde estes afogavam em cerveja as suas mágoas e as suas angústias.
Junto a esta base encontrava-se instalada uma Sanzala habitada por ex-guerrilheiros e seus familiares, que se entregavam ou eram capturados pelas nossas tropas. Estes antigos guerrilheiros depois de treinados e preparados constituíam um corpo de milícias muito eficazes e bastante cruéis designados por G E (Grupos Especiais) que alem de garantirem a segurança da Sanzala, também executavam operações militares, sós ou juntamente com as nossas tropas de quem dependiam militarmente, como eram profundos conhecedores do terreno e do inimigo também nos serviam de guias nas arriscadas operações que desencadeávamos pelo interior da densa e quase impenetrável selva.
Cheguei em rendição individual, isto é só, afim de substituir um camarada morto em combate, por esta altura já os meus futuros camaradas tinham cumprido um ano de guerra nesta inóspita e perigosa região dos Dembos.
Viria a ficar conhecido por Mike, apelido carinhoso de maçarico (novato) e logo no dia imediato á minha chegada saí em coluna militar.
Como novato que era e sem pratica alguma destas coisas da guerra, junto de mim sentado no banco corrido em ripas de madeira do hunimog, seguia o meu colega de transmissões o Pedreiras que logo me avisou.
- Se tivermos que saltar do hunimog, em caso de emboscada não te esqueças de arrastar contigo o rádio. Debaixo de fogo é muito complicado subir de novo à viatura para o recuperar e, ele é o único elo de comunicação com a sede.
Íamos fortemente armados, alem das armas individuais G3, também levavamos granadas, bazucas, morteiros, diagramas e metralhadoras pesadas montadas em tripés com escudos metálicos de protecção presos ás caixas de carga das viaturas
O medo e a tensão faziam com que por detrás de cada árvore imaginasse um inimigo, apetecia-me puxar o dedo suado que levava colado ao gatilho da G3 e disparar para a picada e para as grossas arvores que a cercavam
Dirigíamo-nos para uma base provisória, formada por um circulo de tendas de campanha no cimo de um morro situado ao lado da picada, era aqui que ao final do dia eram recolhidas as máquinas da Engenharia Militar que procediam ao arranjo da picada que saía de Nambu em direcção a Quipedro.
À minha chegada os soldados que faziam a protecção da base rodearam-me curiosos para saberem novidades da Metrópole, todos eles viviam em situação precária e isolados da civilização há mais de um ano. Aqui os soldados pareciam zombes a vaguearem para um lado e para o outro, andavam vestidos cada um de sua maneira, todos em tronco nu, alguns de calções, outros com calças camufladas muito coçadas e com grandes rasgos que tentavam colar com largas tiras de adesivo daquele utilizado nos primeiros socorros. As grandes barbas e cabelos desalinhados ajudavam a compor esta visão surrealista.
(CONTINUA)... 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Capítulo XXVII

ÚLTIMO AEROGRAMA ESCRITO PELO FARSOLA À SUA AMADA.
Querida estou muito feliz, acabei de ser chamado junto do capitão, para me comunicar que finalmente chegou a mensagem a ordenar o meu regresso à Metrópole.
Partirei amanhã cedo numa escolta militar para São Salvador e daí embarcarei rumo a Luanda no avião de carga Nordatlas, aproveitando o vôo de regresso desse avião que duas vezes por semana transporta alimentos frescos desde Luanda.
Espero que da próxima vêz que te escreva já seja de Luanda a comunicar-te a data da minha chegada a Lisboa.
O regresso será realizado a bordo de um dos dois Boeing 707 ao serviço do exército e adquiridos em 2ª mão à TAP, segundo me dizem efectuam a viagem em cerca de 9 horas. Nada comparado aos longos dez dias que demorei a cá chegar a bordo do paquete Vera Cruz.
Estive há pouco, oxalá que pela última vez, a admirar um pôr-do-sol maravilhoso com as tonalidades de vermelho e de dourado a esconderem-se por detrás da imensa e enigmática floresta virgem. Só aqui perdidos na imensidão remota da selva Africana se consegue contemplar semelhante beleza.
Em boa hora deixo para traz este buraco no cu de Judas, aqui passa o tempo que não passa, sinto-me perdido no meio da escuridão e do perigo iminente, as noites são arrepios de medo. Como anteriormente te contei das diversas bases das nossas tropas que eu conheci ao longo destes dois anos, esta é das poucas em que comemos com a arma G3 na mão, ou como o meu camarada Mike costuma dizer, comemos com um olho na marmita e outro no arame farpado.
O inimigo está cada vez mais atrevido, obriga-nos a dormir vestidos e calçados nos abrigos lamacentos disparando tiros isolados durante as temíveis e intermináveis noites, o que faz com que vivamos num elevado estado de alerta.
Em menos de uma semana sofremos dois grandes ataques, no último o inimigo avançou sobre nós com um enorme poder bélico e elevado numero de efectivos, que segundo as informações militares seria composto por cerca de 250 homens comandados pelo temido Pedro Afamado, a sua intenção era tomarem de assalto a nossa posição e manterem o estatuto de ocupantes, o que para a FNLA seria um valioso trunfo a exibir nas negociações com o governo provisório de Lisboa, que três meses passados sobre o 25 de Abril continua indeciso sobre o futuro de Angola.
Ontem estive a ouvir a emissora dos guerrilheiros, a Maria Turra como é conhecida entre os soldados, a locutora afirmava que os valorosos combatentes nacionalistas tinham desferido um violento ataque ao posto do Luvo, no qual alem de infligirem vários mortos á tropa colonialista, também destruíram todas as instalações e apoderaram-se de armas, rádios e outros materiais.
É a guerra de contra informação recheada de mentiras, nós felizmente e ao contrário daquilo que a Maria Turra declarava apenas sofremos alguns feridos ligeiros, o inimigo pelo contrário abandonou na fuga 5 mortos e diverso material de guerra e de enfermagem.
Manuel Aldeias 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Capítulo XXVI

AEROGRAMA ESCRITO PELO FARSOLA À SUA QUERIDA AURORA
Querida espero que ao receberes este meu aerograma te encontres de boa saúde que eu felizmente estou bem.Aqui onde agora me encontro neste buraco infecto chamado Luvo, junto á linha de fronteira norte com o Congo, é um local remoto e bastante isolado, não existem quaisquer populações civis, todos se refugiaram no outro lado da fronteira quando a guerra rebentou em 1961, para onde quer que estendamos a vista só se vislumbra capim muito alto ou florestas virgens cerradas.
Aqui no cu do mundo até a tropa é reduzida, apenas somos dois grupos de combate totalizando cerca de 50 soldados. Como na maioria dos inúmeros aquartelamentos do exército Português espalhados pela imensidão do sertão Angolano vivemos em condições miseráveis, instalados em barracas de madeira, cobertas com chapas de ferro zincadas, onde somos obrigados a suportar o intenso calor Angolano. A água é recolhida num ribeiro próximo, afluente do rio Luvo e transportada num depósito puxado por um veículo hunimog, os guerrilheiros por vezes esperam-nos emboscados junto do local de recolha do precioso líquido e por conseguinte não podemos descurar a segurança, temos que nos deslocar sempre atentos e fortemente armados.
Só durante a noite temos energia eléctrica produzida por um monótono gerador, este tem como principal finalidade iluminar a periferia da pequena base, facilitando o trabalho das sentinelas que nos garantem a segurança durante as intermináveis e perigosas noites.
Em toda a volta deste pequeno quadrado com perto de 100 metros de lado, existe uma cerca de arame farpado e um vala funda, onde nos refugiamos durante os ataques inimigos, também não dispomos de fogões a gás ou eléctricos, para cozinharmos os alimentos socorremo-nos da muita lenha existente nas densas florestas que nos cercam.
Ao menos quando da minha estadia em Nambuangongo alem de haver muita tropa, também era rara a semana em que não fossemos visitados por alguma coluna militar de passagem por aquele estratégico local. Dali partia uma picada que seguia para norte até Quipedro e que passava por Quixico e pelo pequeno destacamento que protegia a ponte sobre o rio Lué e, também uma outra que partia na direcção do por do sol até Zala e, que passava pela Madureira e pelas temíveis e de má memoria curvas do bico de pato e da camioneta vermelha.
Tal como aqui, também Nambuangongo era cercado pela cerrada selva, tínhamos por vizinhos a perigosa e densa floresta virgem do Canacassala, a tal onde o MPLA tinha instalado o Quartel General da sua 1ª Região Militar, sempre que nos deslocávamos para aquelas bandas éramos corridos a tiro.
Recordo-me daquela vez em que as altas chefias militares em Luanda, decidiram que a picada chamada via-lactea e que atravessava aquela terrível e perigosa mata, deveria ser limpa do denso matagal que a havia invadido para poderem mais facilmente chegar perto do coração inimigo, no entanto e apesar do grande numero de tropas envolvidas na segurança das máquinas de engenharia da Junta Autónoma das Estradas de Angola, o inimigo só nos permitiu chegar ate junto da ponte sobre o rio Onzo.
Fernando Farinha repórter da revista semanal Noticia que é publicada aos sábados em Luanda, acompanhou-nos para fazer a reportagem daquilo que as autoridades militares Portuguesas propagandeavam insistentemente, que os guerrilheiros não controlavam nenhuma parte do território Angolano e que as nossas tropas se deslocavam por todo o imenso território. Era uma pura mentira.
Olha, aquele meu camarada, o transmissões, a quem nós chamamos Mike, não sei se irá aguentar os dois anos de comissão, está muito magro, pesa menos de 45 KG e o rádio que transporta ás costas é muito pesado com cerca de 14 KG.
Tenho muita pena dele e por vezes nas operações apeadas ajudo-o a transportar o rádio. Quando estávamos na Força de Intervenção e nos deslocávamos para o mato, o exército contratava dois trabalhadores Bailundos, um para o ajudar a transportar o rádio e outro para ajudar o enfermeiro no transporte da bolsa de enfermagem. Agora aqui como não existem populações civis isso é impossível, está bem que aqui nas operações apeadas não se anda tanto a pé, no entanto esporádicamente aparecem algumas bastante extensas, em que temos que palmilhar dezenas e dezenas de quilómetros pelas cerradas e quase impenetráveis florestas virgens. Nessas operações algumas delas com a duração de 4 e 5 dias, temos que transportar além da arma G3 e de 4 carregadores à cinta, um saco ás costas com as rações de combate e a água para todos esses dias, eu por vezes ainda coloco no saco uma caixa de balas como reserva, não vá o diabo tecê-las.
Manuel Aldeias 

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Capítulo XXV

A mina anti-carro
Caminhávamos há longo tempo pela estreita e sinuosa picada de terra batida que por vezes atravessava zonas de alto capim que nos roçava as mãos e a cara, outras passávamos por florestas completamente cerradas e quase impenetráveis em que a estreita picada parecia uma linha de comboio a entrar num apertado túnel.

As viaturas circulavam vagarosamente com a velocidade permitida pelos pachorrentos burros do mato, mantendo entre si uma distância de segurança com cerca de 50 metros.
Esta região fronteiriça do norte de Angola, era utilizada pelos guerrilheiros da FNLA, o movimento independentista chefiado
por Holden Roberto, principalmente como local de passagem vindos das suas bases do lado de lá da fronteira em território Zairense e, não era considerada uma zona de guerra de tão alta intensidade como Nambuangongo com a sua terrível e perigosa floresta dos Dembos. No entanto a situação militar ultimamente estava a alterar-se, agravando-se drasticamente no período a seguir á revolução de 25 de Abril de 1974, com violentos ataques aos aquartelamentos de fronteira. Por vezes os guerrilheiros também infligiam duras emboscadas ás nossas tropas, ou colocavam minas escondidas nos itinerários por elas frequentados.
A meio da manhã com o brilhante e intenso sol Africano quase a pique, a coluna parou num local ermo de cerrado e alto capim a roçar os canos das espingardas, não deixando ver nada para lá da ondulante cortina verdejante, a não ser a apertada picada por onde circulavam os pachorrentos burros do mato.
Com esta inesperada e repentina paragem ficamos a poucos metros da viatura que nos precedia e, adivinhando a nossa curiosidade um soldado gritou-nos.
- Parece que encontraram rastos frescos na picada.
O Farsola ao ouvir esta notícia alvitrou.
- Não querem lá ver, que estão a preparar-nos alguma emboscada, ou alguma mina – e adiantou – ou provavelmente as duas coisas em simultâneo.
A coluna avançava agora ainda com mais lentidão e o Farsola de vez em quando lançava o olhar por cima da cabina da viatura, na esperança vã de ver surgir o nosso local de destino. Agora que tinham detectado pegadas recentes na picada receava que estivéssemos prestes a enfrentar a morte, os rebentamentos e os tiros, então desejava que rápidamente tudo isso tivesse um desfecho.
Racionava friamente, se fossemos atacados agora que o sol ainda ia alto, até tínhamos hipóteses de os feridos serem evacuados pelos helicópteros que só voavam durante o dia, o pior seria se o provável ataque só surgisse perto da noite, aí teríamos que carregar com os mortos e os feridos, ou esperar pelo romper do dia seguinte.
Ao descrevermos uma apertada curva, que circundava um alto morro, o Farsola contava mais uma das suas muitas aventuras, em que mais uma vez conseguira fugir da polícia ao volante de um potente BMW roubado junto ao Casino Estoril. Repentinamente ouve-se uma enorme explosão e a viatura que seguia na nossa frente é projectada pelo ar acompanhada de uma enorme coluna de pó e de fumo.
Enquanto a nossa viatura abrandava, nós rapidamente saltamos para o chão temendo alguma daquelas terriveis e mortíferas emboscadas que por vezes se seguiam ao rebentamento destas traiçoeiras minas anti-carro.
Felizmente desta vez a explosão da mina foi um acto isolado e nós corremos para o local do impacto.
A viatura sinistrada encontrava-se reduzida a um monte de ferros retorcidos e os soldados que nela seguiam foram projectados para longe, encontrando-se espalhados pela ravina gemendo e soluçando.
Rapidamente alguns soldados subiram aos morros próximos afim de montarem a segurança, inviabilizando deste modo qualquer ataque que o inimigo pudesse desferir aproveitando-se da fragilidade da situação. Alguns dos feridos encontravam-se muito maltratados, apresentando várias fracturas, principalmente dos membros superiores e inferiores.
Eu rapidamente corri para junto do meu camarada de transmissões, auxiliando-o na montagem das antenas e na ligação via rádio com a sede. Alem dos vários feridos, todos nós nos encontrávamos muito abatidos psicologicamente.
Esta mina ao contrário do que seria de prever e, apesar de todas os veículos seguirem cuidadosamente pisando o rasto deixado pelo rodado da sua precessoura, só rebentaria á passagem daquela que seguia na nossa frente, neste caso a 3º viatura, isto deveu-se à armadilha estar munida com um sistema de trincos pré-programados.
Devido à falta de helicópteros para procederem à evacuação dos feridos, recebemos ordens via rádio para se montar segurança à viatura sinistrada, e procedermos à reorganização da coluna com vista ao seu regresso ao local de partida, onde os feridos seriam socorridos.
Entretanto de São Salvador partira ao nosso encontro uma outra coluna com uma equipa médica, que ao cair da noite se encontra connosco e de imediato iniciou a prestação dos primeiros socorros aos nossos camaradas feridos.
MANUEL ALDEIAS

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

CAPÍTULO XXIV

De volta à picada
Ainda era de noite, mas o céu já começava a ganhar a tonalidade de azul petróleo característica da manhã bastante quente que se avizinhava, quando a coluna se pôs em movimento.Esta coluna militar era composta por 6 viaturas sendo a da frente um possante camião de marca berliet, á qual tinham sido retiradas a protecção da cabina, as portas laterais e os taipais, em seu lugar tinham sido colocados vários sacos de areia com o intuito de amortecer o impacto provocado pela possível explosão de alguma mina anti-carro que se encontra-se escondida no piso térreo da picada e, onde seguiam apenas o motorista e o seu guarda costas sentado num saco de areia. Era o chamado rebenta-minas.
Seguiam-se 4 veículos todo – o – terreno de marca hunimog, conhecido entre os soldados por burros do mato devido à sua versatilidade, baixa velocidade e grande capacidade de deslocação em qualquer tipo de terreno, mesmo os mais íngremes.
Nestes veículos os soldados viajavam sentados costas com costas, num banco corrido, construído em ripas de madeira, com as armas apoiadas sobre os braços, com os canos virados para a picada, prontos a saltar em caso de ataque inimigo.
Afim de se protegerem da enorme nuvem de pó levantada pelas viaturas, os soldados usavam á volta do nariz e da bouca uns grandes lenços de pano e também uns enormes óculos tipo mergulhador para lhes protegerem os olhos.
A meio desta escolta militar fortemente armada, num camião carregado com caixas de cerveja, sacos de batatas e de arroz, seguíamos empoleirados alem de mim e do meu camarada Farsola, um outro soldado, alto forte e de grandes mãos calejadas que com a sua voz grossa e forte sotaque Alentejano nos disse chamar-se Baleizão. Tinha combatido o MPLA no leste de Angola na região de Gago Coutinho, até o seu batalhão terminar a comissão e regressar á Metrópole. Ele tal como nós viera em rendição individual e como tal ainda tinha pela frente alguns meses de guerra, o quartel-general em Luanda decidira que acabaria o seu tempo de comissão junto da fronteira norte, agora a combater contra a FNLA.
O Baleizão confirmou-nos tal como o Vitinha já nos tinha contado, que efectivamente o MPLA tinha derrubado um Heli-canhão e abatido o seu piloto, na mesma região em que uma determinada companhia de comandos, que não sabia precisar qual, tinha sofrido uma violenta emboscada e, afirmava que esta tivera lugar entre o Luso e Gago Coutinho, em plena estrada alcatroada, causando-lhes 5 mortos e um elevado numero de feridos graves.
Segundo contou era um local onde não seria de prever um ataque de tamanha envergadura, apesar da desvantagem tanto em numero, como por se encontrarem completamente desabrigados em plena estrada, os comandos reagiram com grande valentia e determinação, acabando por colocar em fuga o grupo inimigo muito antes da chegada do grupo de socorro.
Manuel Aldeias









sábado, 6 de novembro de 2010

Capítulo XXIII

 NOVA ETAPA SE AVIZINHA
O meu camarada de odisseia, o Farsola, continuava internado na pequena enfermaria do quartel, já não sofria das altas febres e intenso mau estar que caracterizam o paludismo, mas no entanto ainda se encontrava bastante débil.
Da primeira vez que fora atacado por essa doença em Nambuangongo, a crise fora tão
severa que o nosso médico se vira obrigado a mandá-lo evacuar para o Hospital Militar de Luanda, aproveitando o regresso da pequena avioneta militar DO 27 que duas vezes por semana nos visitava, transportando alguns alimentos frescos e o sempre ambicionado correio.
Eu ocupava muito do meu tempo junto dele, confortando-o e animando-o. No entanto além de doente o meu camarada estava bastante ansioso por chegar ao nosso local de destino.
Irritava-se comigo, barafustando.
- Mike! Vai ao centro da cidade para saberes se aparece alguma coluna do Luvo – e adiantava com voz rouca e débil – Já deve ter chegado a ordem para eu regressar á Metrópole.
De facto a sua comissão de dois anos terminava no final daquele mês, mas ainda era muito cedo para regressar. Geralmente todos os soldados ficavam sempre mais dois ou três meses, era o chamado mata-bicho.
No entanto eu compreendia perfeitamente a sua ansiedade. Eu pelo contrario ainda tinha pela frente vários meses de guerra e convinha-me prolongar ao máximo a minha estadia naquele local, longe da vida de toupeira nos abrigos do Luvo e, das perigosas e desgastantes emboscadas junto da linha de fronteira.
Conhecedor da minha situação diametralmente oposta à sua, revoltava-se muito comigo e ameaçava furioso de mãos em riste.
- Se tenho conhecimento da vinda de alguma coluna e tu não me avisas, rebento-te os cornos com a arma G3.
- Acalma-te pá – respondia-lhe eu – Não estás em condições de viajar 80 km por aquela picada esburacada, sentado no banco de ripas de madeira de uma viatura hunimog.
O meu amigo encontrava-se tão ansioso e desorientado, que se lhe escondesse a verdade, não sei qual seria a sua reacção.
Numa das minhas deslocações ao centro da cidade, encontrei os soldados de uma coluna pertencente a uma companhia vizinha da nossa.
Depois de conversar com o comandante da coluna, decidimos que iríamos à boleia até um local conhecido como cruzamento do Lucossa. Uma vez aí chegados seriamos recolhidos por uma outra coluna procedente do Luvo que nos transportaria até ao nosso local de destino.
Em má hora tomei esta decisão pois esta seria uma viagem longa e bastante atribulada, durante a qual seriamos de novo atacados e, mais uma vez o sangue dos nossos camaradas correria por terras Angolanas.
Desta vez aconteceu o accionamento de uma mina anti-carro escondida no piso térreo da estrada, que destruiria completamente uma viatura e nos provocaria vários feridos, como relatarei no próximo capítulo.

Manuel Aldeias

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Capítulo XXII

O enorme saco das rações
O Farsola parecia ganhar novas forças nas pernas cansadas, sob o peso do enorme saco das rações que transportava ás costas e, da arma G3 que apertava nas mãos suadas e feridas pelo capim seco e áspero.
Ele e o seu grupo de combate, tinham deixado para traz uma mata virgem tão cerrada, que o caminho era aberto à força de catana empunhada pelo soldado da frente, o qual era rendido periodicamente.
Agora que entravam no espaço aberto, estavam a ser fustigados pelo abrasador sol Africano e, pior do que isso as balas voltavam de novo a assobiar por sobre as suas cabeças.
Deixava-o desesperado ouvir os irritantes tiros das temíveis costureirinhas que, com os seus cadenciados estampidos metálicos lhes faziam recordar a máquina de costura da sua mãe, na longínqua e saudosa Metrópole.
De um salto levantou-se da pequena cova em que se abrigara, limpou os olhos das gotas de suor pegajoso que lhes turvavam a visão, ajeitou à cinta as pesadas cartucheiras que transportava enfiadas no largo cinturão e, correu na pegada do seu camarada da frente e dos restantes soldados, que em fila indiana iniciavam a subida de um alto morro coberto de capim rasteiro, onde acabariam por ficar encurralados, perseguidos por um forte grupo de guerrilheiros. Valeram-lhes na altura os helicópteros Puma que, em desespero de causa e com imensas dificuldades os tinham conseguido resgatar.
Após ser evacuado e ao chegar à base avançada, o médico achara que o seu estado de saúde era tão débil que decidira mandar colocá-lo a soro.
Revia em pensamento toda aquela arriscada e terrivel situação passada alguns meses antes na Força de Intervenção e, maldizia a sua sorte por agora se encontrar deitado numa cama de hospital, a braços com uma grave crise de paludismo.
Afinal encontrava-se lutando na maldita guerra em Angola, tinha deixado para trás a vida boémia passada no Intendente e no Bairro Alto.
Aí sim! Esses eram os seus locais de caça, envolvendo-se em cenas de pancadaria com os outros chulos, pela posse e protecção das prostitutas mais rendosas. Ou ainda juntamente com o seu gang de Cascais, assaltando potentes automóveis com os quais disputavam renhidas corridas pela Marginal em direcção a Lisboa, acabando por vezes com aparatosos despistes na curva do Mónaco.
A despedida da sua Aurora não tinha sido fácil. A rapariga de apenas dezanove anos de idade, enfrentaria a partir daí a concorrência das demais prostitutas e, ficaria sujeita a ser roubada e maltratada pelos outros chulos.
- Quanto tempo a Aurora conseguirá resistir sem a protecção de um homem? -Perguntava-me ele várias vezes, e acrescentava – Passado todo este tempo provávelmente já terá arranjado algum gajo, que lhe dê carinho e a proteja na dura e espinhosa vida da prostituição –
Conhecedor de toda esta problemática o Farsola vivia atormentado pelo ciúme e, receoso de vir a perder a mesada que a Aurora lhe enviava periódicamente em valor declarado, ou simplesmente alguma nota de quinhentos escudos dissimulada no interior das longas e amorosas cartas, em que a rapariga lhe jurava amor eterno.
Manuel Aldeias




quarta-feira, 20 de outubro de 2010

CAPÍTULO XXI

Os meninos da Sanzala
O boato de que um soldado vagueava pela Sanzala distribuindo latas de conserva, correu rápido por entre as pobres e famintas crianças e, em poucos minutos encontrava-me cercado por um enorme bando de meninos descalços e esfomeados, que se atropelavam uns aos outros na ânsia de serem presenteados com algo que lhes aliviasse um pouco a fome, ou apenas servisse de conduto para acompanhar a sempre presente fuba que os seus progenitores cultivavam, de modo incipiente nas suas pequenas lavras que amanhavam junto ás ultimas palhotas.

A fuba ou farinha de mandioca extraída a partir das raízes deste tubérculo está muito vulgarizada emAngola e, constitui o principal alimento destas pobres gentes.
Até ser transformada em farinha, a mandioca passa por um longo processo de transformação. Após serem colhidas as raízes são colocadas de molho em água, posteriormente secas ao sol e finalmente moídas com um pau num pilão de madeira, até serem transformadas numa farinha branca a que chamam fuba.
Naquela tarde maravilhosa em que o sol brilhava com intensidade num exuberante céu azul, saíra do quartel onde me encontrava a aguardar transporte para o Luvo, uma base das nossas tropas em cima da linha de fronteira. Vinha carregado com algumas latas de conserva surripiadas das rações de combate, que introduzira no saco verde da tropa e também nas grandes algibeiras do camuflado.
Cedo descobri que eram poucas as latas para tantos meninos famintos, no entanto sentia-me bem comigo próprio, por estar modestamente a contribuir para mitigar um pouco a fome destas pobres crianças.
Muitos desses meninos frequentavam a escola primária existente na Sanzala e, quase todos entendiam Português, no entanto eu também já compreendia muitas palavras de Kissolongo, o dialecto local, o que facilitava bastante o diálogo.
Ao fazer a habitual pergunta: O que queriam fazer quando fossem grandes? Um dos mais velhos, descalço e vestido apenas com uma velha e esfarrapada camisola adiantou-se para dizer um pouco envergonhado.
- Patrão. Eu quando for homem quero ser médico. Para poder curar o paludismo que já matou meu pai, minha mãe e meus dois irmãos.
Outro ainda muito novato e que me disseram ser um dos quinze filhos do feiticeiro e curandeiro local, gritou dizendo.
- Eu quero ser enfermeiro dos tropas, para dar injecções nos doentes.
Achei estranha aquela afirmação vinda de um filho do curandeiro. Pelos vistos não acreditava nas artes curativas do pai, ainda tentei indagar junto do mesmo a razão de tal atitude mas este fechou-se no seu mutismo não me respondendo.
Tanto anos passados sobre este episódio, ainda pergunto a mim mesmo muitas vezes.
Qual terá sido o futuro desses meninos? Aqueles que tanta esperança demonstravam, mas que pouco tempo depois destes factos se viram a braços com uma atroz guerra civil, que devastou o vasto território Angolano durante vários anos.
Os meninos daquele tempo distante serão agora homens com mais de 40 anos, no caso de serem vivos, o que não será muito provável num país em que a esperança de vida ronda os 42 anos.
Manuel Aldeias

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

CAPÍTULO XX

O amuleto
A meio da tarde, sob um sol escaldante a brilhar no céu tingido de um azul perfeito e inteiramente límpido de nuvens, dirigi-me para a Sanzala que ficava do outro lado da pista de aviação.Era uma grande Sanzala habitada por largas centenas de pessoas da tribo kicongo. Muitas delas diziam-se descendentes dos antigos reis do Congo, eram animistas com as suas crenças ancestrais e assentavam o seu modo de vida nos moldes da cultura tradicional. No entanto devido ao contacto com os brancos e, à influencia das missões católicas começavam a evidenciar alguma tendência para a vida sedentária e para o pequeno comercio. Enfim, começavam a adoptar hábitos da cultura ocidental embora temperados pela tropicalidade. As autoridades militares acusavam-nos de ociosidade, de serem pouco dados ao trabalho e não serem receptivos ás iniciativas governamentais, no entanto toda esta atitude talvez fosse resultante da rejeição ao colonialismo, da decadência da sua cultura tradicional e ainda aos hábitos herdados da extinta monarquia do Congo.
Também se admitia que poderiam ter contactos com o inimigo e com as populações refugiadas na mata e, assim sendo um soldado a passear solitário como era o meu caso teria que ter alguma precaução e não se aventurar muito no interior da Sanzala.
Devido á tarde de calor abrasador a maioria das pessoas encontravam-se recolhidas no interior das suas cubatas, construídas em adobe e cobertas com uma grossa camada de capim que alem de as tornarem bastante frescas, também as protegiam das fortes chuvadas que muitas das vezes caiam ao fim de tarde e tudo alagavam.
Demasiado magras, completamente descalças, vestidas de modo tradicional com uns panos muito garridos atados à altura do peito e, tagarelando ruidosamente regressavam das lavras por um carreiro que conduzia á Sanzala, duas jovens mulheres que me miravam curiosas e admiradas por verem um soldado branco que caminhava sozinho àquela hora do dia em que o sol abrasava. Geralmente os soldados quando se deslocavam á sanzala faziam-no em grupo e, nunca sob aquele calor sufocante.
Uma delas transportava à cabeça um feixe de lenha, enquanto que a outra alem de uma criança de meses que trazia ás costas atada com um pano, ainda equilibrava graciosamente sobre a cabeça uma cabaça com água, passaram por mim galhofando e rindo deixando ver os seus belos dentes brancos como a neve.
Entretanto quando me preparava para regressar atravessando de novo a pista, ouço uma voz que gritava.
- Patrão. Patrão. Espera!
Voltei a cabeça na direcção da Sanzala e, qual não é o meu espanto ao reconhecer correndo na minha direcção o meu antigo companheiro de viagem, o meu salvador da terrível diarreia, o nosso ancião de braço ao peito, que ao chegar junto de mim me estendeu a única mão livre dizendo.
- Toma patrão, pendura nos cabeça, dar sorte.
Aceitei de bom agrado o amuleto que me era oferecido. Tratava-se de um minúsculo e encantador crocodilo do tamanho de um polegar, artisticamente esculpido em marfim e preso por um fio de cabedal delicadamente entrançado, que eu imediatamente coloquei ao pescoço e usei durante largo tempo. Até que infelizmente, um dia o perdi ao atravessar a vau um rio tão caudaloso, que a sua forte corrente me dava pelo pescoço e que se dizia estar repleto de crocodilos. Ironicamente ficou a fazer companhia aos seus congéneres de carne e osso.
Manuel Aldeias

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Capítulo XIX

Invadido pela nostalgia
Naquela tarde abrasadora de calor escaldante e saturada de humidade, com o pouco dinheiro que o meu amigo Farssola me havia emprestado e que apenas dava para uma cerveja, encontrava-me sentado á mesa do Café Cressa que àquela hora estava praticamente vazio. Os meus pensamentos divagavam para longe até à saudosa e distante Metrópole e, recordava os meus familiares e amigos que não via há praticamente dois anos.

Para cumprir o serviço militar obrigatório, vira-me obrigado a interromper abruptamente o meu trabalho no Arsenal do Alfeite, onde já trabalhava á cerca de 3 anos.
Pela minha mente também passavam em turbilhão todos os meus colegas da Escola Emídio Navarro em Almada, onde eu frequentava o Curso Industrial em regime nocturno como trabalhador estudante
Geralmente depois da saída do trabalho juntamente com um grupo de colegas, dirigíamo-nos ao conhecido Café Central de Almada e ao seu vasto e acolhedor salão de bilhares, onde disputávamos renhidas partidas de snooker. Ocupando deste modo o tempo até ao início das aulas que começavam invariavelmente às 19 horas e, se prolongavam até ás 22 horas e 45 minutos.
A maioria destes meus colegas e amigos também agora se encontravam combatendo, numa das três frentes desta suja e cruel guerra, alguns aqui em Angola, outros em Moçambique e, outros ainda na Guiné.
Encontrava-me completamente absorvido por estes pensamentos nostálgicos que me toldavam a mente, quando sinto uma mão no ombro. Era o Eusébio, o mulato empregado de mesa do café que me pergunta, com o seu sotaque característico.
- Então patrão. Vai mais uma cuca fresquinha?
- Não Eusébio, por hoje já tenho a minha conta. Sabes? Ultimamente não tenho andado bom do estômago.
Paguei a cerveja com os últimos Angolares cedidos pelo Farsola e, invadido pela tristeza e pelo ressentimento com a maldita guerra, saí do café caminhando lentamente pela rua principal.
Já o sol se escondia no horizonte quando regressei ao quartel, vislumbrando à distancia o intenso mar verde da floresta, que se ia cobrindo lentamente com o manto escuro do céu, preparando-se para adormecer até que de novo o sol a raiasse com o seu brilho intenso.
Entrei para o refeitório afim de assistir ao detestado rancho, mas nessa noite pouco ou quase nada comi do intragável arroz com salsichas.
Manuel Aldeias

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

CAPÍTULO XVIII

MEMÓRIAS de OUTRÓRA
A noite apresentava-se magnifica e muito quente, num céu salpicado por milhões e milhões de reluzentes estrelas a brilharem na escuridão completamente livre de nuvens e poluentes, quando á saída do refeitório encontro sentados num banco corrido em madeira e em amena cavaqueira o Lombriga meu antigo colega da Escola Emídio Navarro em Almada, juntamente com um seu amigo de Cacilhas, electricista na Lisnave.
Ao ver-me, o Lombriga chamou-me para junto deles, enquanto ia dizendo que nos Estados Unidos se estava a assistir a uma grande contestação á guerra do Vietname sendo a cantora folk, Joan Baez uma das vozes mais activas e virando-se para mim perguntou-me.
- Lembras-te Mike? Quando nós os dois, juntamente com o Parafuso e o Violas nossos colegas do Arsenal do Alfeite, fugimos á frente da policia de choque no Estoril?
- Se me lembro! Isso foi em 26 de Agosto de 1970, quando pretendíamos assistir ao festival de música na mata dos Salesianos.
Este festival fora realizado pela Junta de Turismo da Costa do Sol, juntamente com a participação de José Cid e tudo parecia que estava a decorrer muito bem, com a confirmação da actuação do Quarteto 1111, dos Sheiks, Rui Mingas e muitos outros, quando em cima da hora o Marcelo decidira cancelá-lo.
Centenas e centenas de jovens desconhecendo a proibição de última hora, começaram logo a seguir ao almoço a deslocarem-se para o Estoril.
O Lombriga recordava ainda.
- O nosso grupo de Arsenalistas abastecido com sandes e algumas bebidas seguimos de Cacilheiro até ao Cais do Sodré, onde apanhamos o comboio para o Estoril.
O amigo de Cacilhas atirava.
- Nas ruas circundantes da mata dos Salesianos e por detrás do Casino, encontravam-se escondidos vários autocarros repletos de polícias armados de capacetes, cassetetes e escudos, de repente e sem qualquer provocação da nossa parte começaram a desancar o pessoal.
Eu interrompi para dizer.
- Recordo-me perfeitamente de que ao regressar-mos de comboio e, ao chegarmos ao Cais do Sodré já o vespertino Dário Popular noticiava na primeira pagina que o festival fora cancelado e, em letras mais pequenas que os jovens tinham provocado a policia de choque obrigando esta a reagir.
O amigo de Cacilhas também tinha sido um dos vários agredidos pelos lacaios do Capitão Maltês, o terrível comandante dessa detestável e odiada policia e recordou-nos que cerca de um ano antes, também se tinha realizado um festival do género na ilha de Wight em Inglaterra que juntara mais de 250 000 jovens, vindos de vários países. No entanto aquele que reunira maior número de participantes fora o celebre festival de Woodstok nos Estados Unidos, que juntara durante três dias cerca de meio milhão de pessoas, realizado entre os dias 15 e 18 de Agosto desse mesmo ano de 1969.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Convivio dos Felinos

A todos aqueles que em locais tão distantes como Austrália, Canadá, Russia e cerca de mais vinte países, estão a acompanhar esta minha história e que já se aproximam a passos largos dos dois milhares, os meus sinceros agradecimentos.
Hoje porem vou abrir um parêntesis para falar do 25º almoço de confraternização dos Felinos.
Este evento realizou-se no último sábado dia 25 de Seembro, nos belos jardins da casa do nosso anfitrião António Mucharreira, ex-alferes miliciano da C. CAV. 8453 “ Os Felinos” que estiveram em Angola de 1973 a 1975 mais precisamente junto da fronteira norte, num buraco infecto do cu de judas chamado Luvo e tambem em Mamarrosa.
A concentração teve lugar junto ao memorial dos ex- combatentes do Ultramar em Freixoeira no concelho de Torres Vedras, onde após guardarmos um minuto de silencio em memoria dos camaradas falecidos, depusemos um lindo ramo de flores.
Seguiu-se o animado repasto ao ar livre, em que os diversos participantes exibiram as mais variadas iguarias características das suas terras de origem, como carapaus alimados, chanfana de cabra, leitão á Bairrada e tantos outros que se tornaria fastidioso estar aqui a enumerá-los a todos.
Durante o convívio tivemos ocasião de admirar a vasta e rica colecção de azulejos antigos, que ornamentam os jardins desta magnifica casa senhorial, alguns deles remontando ao século XVII.
Em nome de todos os participantes quero agradecer a maneira simpática e hospitaleira como fomos recebidos. Não podendo deixar de enaltecer o enorme trabalho e canseira que os donos da casa, com especial destaque para a esposa D. Anabela, tiveram para poderem receber condignamente e com tanto carinho este grupo de Felinos e seus familiares.
O convívio do próximo ano de 2011, será realizado pelo felino João Valente na Veneza Portuguesa, a linda cidade de Aveiro, em data a anunciar futuramente.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

CAPÍTULO -17

O paludismo

Extremamente pálido, alagado em suores, respiração ofegante e com um braço ligado a um fino tubo, por onde gotejava lentamente um liquido incolor que eu identifiquei como sendo soro fisiológico.
Ali estava postado numa cama da pequena enfermaria militar, corpo inerte, completamente nu, apenas resguardado por uma ponta de lençol que mal lhe cobria as partes mais íntimas. Não o reconheci de imediato, tal o seu débil estado, mas após um olhar mais detalhado, identifiquei-o pelo seu cabelo preto, liso e bastante ralo, com entradas pronunciadas.
- Farssola! Farssola! Acorda sou o Mike! – Bem o chamei, no entanto manteve-se com os olhos semiabertos e sem dar acordo de si. Apenas a sua respiração arquejante me indicava que o meu amigo e camarada de odisseia continuava vivo. Estava um farrapo, uma débil amostra daquele rapaz atrevido, gingão e rufia que comigo viajara desde Luanda.
Após a nossa chegada a São Salvador do Congo, o meu amigo Farsola fora internado na pequena enfermaria do quartel acometido duma grave crise de paludismo com febres altíssimas, vómitos, dores de cabeça e intenso mal-estar, o seu estado era de tal modo confrangedor que o médico militar decidira-se prontamente pelo seu internamento e que lhe fosse de imediato aplicado um balão de soro. Tendo o enfermeiro me confidenciado que se não melhorasse nas próximas 24 horas, seria evacuado para o Hospital Militar de Luanda no avião militar Nordatlas que voava até São Salvador duas vezes por semana.
No entanto passados os primeiros dois dias o seu estado tinha melhorado consideravelmente e o médico decidira retirar-lhe o soro.
O Farssola era um fumador inveterado, chegando a fumar três maços de cigarros por dia. Como estava sem dinheiro e o vicio era muito forte, emprestei-lhe o pouco que ainda me restava com o qual comprou um maço de cigarros e, guardando o restante disse-me.
- Se não te importas, fico com o resto da grana para investir no jogo da lerpa logo á noite com os outros doentes.
- Está bem. Seja como queiras – Respondi contrariado.
Nessa mesma noite antes de me deitar voltei a visitá-lo, não parecia o mesmo, estava  muito bem disposto e  segundo me disse já não tinha arrepios de febre desde o meio da tarde. Com um sorriso irónico contou-me que já tinha ganho alguma grana ao jogo, e procurando por debaixo da almofada, extraiu uma velha carteira de cabedal muito coçado de onde retirou alguns Angolares que estendeu na minha direcção dizendo.
- Toma lá Mike. Para beberes uma bujeca fresca e comprares-me outro maço de tabaco. O restante é para eu voltar a investir amanhã no jogo, se o cabrão do paludismo me deixar.
O paludismo também conhecido por malária, é provocado pela picada da fêmea dum determinado mosquito, que alem de provocar dores de cabeça e náuseas, também se caracteriza por períodos de altas febres alternadas com outros de aparentes melhorias.



domingo, 19 de setembro de 2010

POR ANGOLA ACIMA

Parte 16
Devido ao rápido anoitecer, o céu carregara-se rápidamente de inúmeras estrelas brilhantes e, um breve clarão subia por detrás de um distante morro. Era a lua cheia em todo o seu esplendor, que ajudava a dissipar as densas trevas que escureciam a frondosa mata e nos dava as boas vindas a São Salvador do Congo.
No entanto a caminhada decorria com lentidão e, já a noite ia bastante avançada quando chegamos ao final de mais esta etapa, pela longa odisseia que estávamos a realizar por Angola acima.
Enquanto os soldados da escolta montavam segurança á coluna, nós completamente ensopados em água, lama e suor, encaminhamo-nos para um quartel que funcionava como Adidos e onde iríamos permanecer enquanto esperávamos por outra coluna que nos conduzisse ao Luvo. Este pequeno quartel onde agora nos dirigiamos ficava situado na periferia de São Salvador, mas ainda dentro da cerca de arame farpado que cercava esta cidade, que era a capital do distrito do Zaire e a maior e mais importante da região, contudo não seria muito maior que qualquer das vilas que nós conhecíamos na Metrópole.
O cabo quarteleiro já dormia e perante o nosso pedido, para que nos atendesse e desse guarida resmungou ensonado.
- Isto não é horas de me virem acordar. Podem tomar banho caso queiram.
Desenrasquem-se. Amanhã pela manhã logo os atendo.
E devido á nossa insistência, levantou o mosqueteiro que protegia a sua cama dos mosquitos e ainda ameaçou.
- Tenham tento na língua, se não amanhã pagam as favas.
Não sei o que queria dizer com esta ameaça. Descobrimos os chuveiros improvisados com uns bidões, que felizmente se encontravam atestados de água e tomamos um retemperador e reconfortante banho.
De seguida com a trouxa ás costas e as armas a tiracolo, encaminhamo-nos para o restaurante “Cressa”, que apesar do adiantado da hora se encontrava repleto de soldados pertencentes á protecção da coluna. Aqui comemos um belo bife de pacassa acompanhado pelas deliciosas batatas fritas, cortadas aos palitos muito finos características deste restaurante e, muito apreciadas por todos estes jovens fardados de soldados.
Nessa noite os soldados mostravam-se cabisbaixos e tristes, não evidenciando aquela algazarra de alegria contagiante que costumava caracterizar o ajuntamento de tantos jovens rapazes na flor da idade. Todas as conversas em tom pesaroso eram referentes á terrível e sanguinária emboscada e, mesmo entre aqueles que intervieram directamente no combate, as informações quanto ao número de mortos e feridos eram contraditórias.
Na nossa mesa faziam-nos companhia dois conhecidos de longa data do Farsola, o Grilo seu compincha da noite Lisboeta e o Sintra um calmeirão que do alto do seu metro e oitenta, afirmava emocionado mas com voz grossa e convincente.
- Pelo menos seis mortos contei eu, pois nós fomos dos primeiros a chegar e a nossa sorte foi caminhar-mos pela berma da esquerda, aquela que dava para a ravina.
- Ah, pois! Acrescentou o Grilo – A secção do Bandeira progrediu rente ao morro e caíram num campo de minas, que lhes causou pelo menos quatro feridos graves.
Eu ouvia perplexo o relato impressionante desta enorme carnificina.
O Farsola com o seu vozeirão comentava.
- Foi uma emboscada e peras, a fazer-me lembrar aquela que os de Quicabo sofreram na zona das Sete Curvas. É que lá os turras também fizeram um prisioneiro que levaram para o Congo.
- Como tiveste conhecimento disso? Perguntei-lhe curioso.
Então o Farsola contou-nos que tinha recebido uma carta de um seu vizinho de Cascais que fazia parte do Batalhão de Caçadores 3838, onde descrevia a violenta emboscada que tinham sofrido na zona das Sete Curvas entre Quicabo e Balacende, na qual perderam a vida quatro soldados e também um fora feito prisioneiro. O seu amigo também se lamentava que este Batalhão tinha sofrido este revés quando se encontrava praticamente no final da comissão.
Devido ao segredo militar em ambiente de guerra, agravado pela omnipresente censura, tanto em Lisboa como em Luanda e mesmo até nós próprios aqui no mato, não tínhamos conhecimento destes trágicos acontecimentos, o pouco que íamos sabendo era através da troca de correspondência com os nossos amigos espalhados pelo imenso território Angolano e, nas outras frentes de guerra em Moçambique e na Guiné.
Também tinha sido através de uma carta enviada pelo Batata, meu colega de trabalho no Arsenal do Alfeite, que eu tomara conhecimento de que a Guiné declarara unilateralmente a independência em Setembro de 1973 numa cerimónia realizada no seu interior, mais propriamente em Madina do Boé. O Batata ainda me contara que a situação na fronteira norte estava de tal modo complicada, que a guarnição de Guileje tinha sido obrigada a abandonar a sua posição e, fugir a corta mato até á próxima base das nossas tropas chamada Gadamael.
Após este desaire o governador da Guiné, General Spínola ordenara a prisão do comandante de Guileje, á boa maneira de Salazar aquando da invasão de Goa pelo exército da União Indiana.
MANUEL ALDEIAS

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

CHAMAVAM-LHE VITINHA

Capíulo XV
Chamavam-lhe Vitinha, olhos tristes, cara e corpo de menino, vestido com uma farda de soldado. Chegara aqui ao Quiende na última coluna do MVL há 15 dias. Pelo caminho fora acometido por uma forte crise de paludismo, com febres muito altas, que o obrigara a interromper a viajem e baixar á improvisada enfermaria da base durante cerca de uma semana, o seu estado era tão grave que passara os primeiros dias ligado a balões de soro.

O Vitinha era agora o nosso novo companheiro de viajem e, desconhecia que sofrêramos na véspera uma mortífera emboscada. Esta apenas era do conhecimento dos soldados que participavam na coluna e dos de Quiximba por ser a base mais próxima e onde fora montado o posto avançado de socorro.
Quando lhe relatamos este drama e que o pessoal do Meposo tinham sofrido 6 mortos, 2 feridos graves, 6 feridos ligeiros e ainda dois prisioneiros ficou muito transtornado e, com os olhos marejados de lágrimas contou-nos emocionado que também ele se dirigia para o Meposo em rendição individual, afim de substituir um camarada morto.
O mais recente dos nossos companheiros de viajem fazia-se acompanhar de uma grande mala de madeira, a que chamávamos mala de porão. Este tipo de malas servia para acondicionar os diversos pertences e no final da comissão depois de repleta de produtos de artesanato e outras recordações eram enviadas para a Metrópole no porão de um navio mercante, daí o seu nome.
O novo viajante abriu a mala para me mostrar acondicionado numa caixa de madeira, um gira-discos a pilhas de marca Sharp. Também me mostrou um grande volume de discos de vinil, ao mesmo tempo que me dizia.
- É pena, não podermos ligar o gira-discos. Provavelmente irias gostar de ouvir José Afonso.
- Não me digas que também tens discos do Zeca Afonso – perguntei incrédulo.
- Ah. Pois! Tenho aquele LP intitulado Baladas de Coimbra, que foi proibido pela censura logo após a sua edição e onde ele canta: os vampiros comem tudo, comem tudo e não deixam nada. No entanto não te preocupes, que vais ter oportunidade de ouvir quando chegarmos a São Salvador.
Também me contou que na sua antiga companhia, os soldados se juntavam á sua volta em grandes grupos para ouvirem este cantor proibido e também o padre Fanhais. O capitão da sua companhia propôs-lhe comprar o disco do José Afonso, chegando-lhe a oferecer bom dinheiro que ele nunca aceitou.
Disse-me que esse capitão miliciano se viu obrigado a ingressar no serviço militar, depois de sucessivos adiamentos justificados com os estudos. Estudava em Coimbra quando o ministro da educação José Hermano Saraiva foi vaiado pelos estudantes no seguimento de uma visita á Universidade que fizera acompanhado do Tomás. Ambos foram assobiados e apupados pelos estudantes que tinham sido impedidos de discursar. Como retaliação o ministro acabou com os adiamentos, obrigando os estudantes a incorporarem-se coercivamente na tropa. Muitos deles deram origem aos chamados capitães de proveta ou de aviário, assim chamados na gíria de caserna, por em pouco mais de seis meses passarem de instruendos do curso de oficiais milicianos a capitães comandantes de companhia.
-Estes combates aqui no norte são obra da FNLA, que escorraçou o MPLA para o leste e para Cabinda – disse-me ele, demonstrando profundo conhecimento da situação militar e acrescentando ainda. – O MPLA aqui no norte está confinado a pequenas bolsas e, apenas nas matas dos Dembos. No entanto no Leste para onde encaminhou grande parte do seu esforço de guerra e, apesar de constantemente perseguido pelas nossas tropas e até mesmo pela Unita de Jonas Savimbi, continua a fazer grandes estragos, chegando mesmo há poucos meses atrás a derrubar um Heli-canhão na zona de Gago Coutinho.
MANUEL ALDEIAS 

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O CURANDEIRO AFRICANO

Capítulo XIV
O sol brilhava a pique. O calor tórrido e abafado de início de tarde sufocava-nos em cima da caixa de carga da camioneta, que agora lentamente começava a sair do imenso mar verde desta floresta que nos oprimia e fazia sentir pequeninos e insignificantes.
Pela nossa frente estendia-se uma região aberta tipo savana, salpicada de graciosos embondeiros e outras árvores de grande porte, dispersas pelo alto capinzal matizado de tons dourados e pastel, a ondular graciosamente ao sabor de uma brisa leve e sufocante
O nosso ancião que o Farsola ajudara a descer da viatura durante a última paragem, regressava agora apressado transportando nas mãos umas pequenas raízes e algo de aspecto estranho que me pareceu serem pequenos cogumelos.
Avançou para mim dizendo com voz ofegante.
- Toma patrão, bébi nos água. Ser bom prós caganera.
O Farsola ao reparar na minha indecisão, retirou aquela miscelânea das mãos do ancião introduzindo-as de imediato na água morna do cantil, agitou bem o conteúdo que me entregou dizendo.
- Bebe Mike. Pior que o que estás agora, não deves ficar.
Com repugnância bebi uns tragos daquele chá morno e asqueroso.
De imediato notei que os vómitos pareciam querer dar-me tréguas e instigado pelo ancião fui bebendo mais e mais até esvaziar o cantil e, a diarreia e os vómitos cessarem na totalidade.
Com o sol de fim de tarde a pintar de vários tons vermelhos e dourados a linha do horizonte, chegamos a Quiende ultima base das nossas tropas antes de São Salvador. Aproveitando a curta paragem, o Farsola foi de corrida encher de novo os cantis e ao chegar junto a mim aconselhado pelo ancião preparou nova infusão daquele produto milagroso que estendeu na minha direcção ordenando.
- Toma. Bebe mais este cantil de chá, que ao chegarmos a São Salvador tens que estar em forma para bebermos umas bujecas fresquinhas.
Agora já sem relutância bebi mais uns tragos daquela misericordiosa mistela que tanto bem me estava a fazer.
Anoitecera muito rapidamente como acontece nestas regiões tropicais e a noite apresentava-se escura como breu, fervilhando de inúmeras estrelas que brilhavam docemente na noite sem luar e livre de poluição.
Este circo de dezenas e dezenas de viaturas progredia agora muito mais rápido e, sem as constantes paragens que tanto nos haviam atrasado. A estrada encontrava-se desimpedida de minas, graças ao trabalho de picagem efectuado por soldados de outras companhias, desviadas para aqui afim de montarem a segurança do percurso e abreviarem o máximo possível o perigoso trajecto nocturno.
MANUEL ALDEIAS

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Uma lata de sardinhas podres

Capítulo XIII
- Cavalgávamos vagarosamente o vasto oceano verde da floresta, ao sabor dos solavancos da viatura nos inúmeros buracos da picada. Era como se navegássemos no convés de algum pequeno veleiro em pleno mar alto, só que aqui não eram as ondas que nos salpicavam a cara, mas sim as densas ramagens que roçavam os taipais da camioneta.
O meu enjoo começara com uma forte cólica intestinal, seguida de uma repentina indisposição que me levou a colocar a cabeça para fora dos taipais e lançar a carga ao mar. Na boca, nariz e garganta, tinha-se instalado um nauseabundo sabor a sardinhas de conserva podres.
Quando nessa quente manhã abrira a lata de sardinhas em molho de tomate retirada da caixa de cartão da ração de combate, reparara que esta se encontrava um pouco opada e com vestígios de ferrugem no seu exterior, contudo não valorizei estes indícios já que o seu conteúdo parecia estar intacto e em condições. O nosso ancião de braço ao peito continuava a viajar connosco e repartíamos com ele as nossas parcas rações, foi o que aconteceu desta vez e, ele aceitou de bom agrado os dois rabos de sardinha entalados entre duas bolachas de água e sal que lhe oferecera.
Provavelmente por ser mais resistente ou talvez por ter comido menos, o nosso ancião mantinha-se sereno e olhava-me condoído perante o meu estado que lamentavelmente piorava a todo o momento
Os constantes saltos da veículo nos buracos do caminho estavam a tornar-se cada vez mais insuportáveis e a deixar-me o corpo totalmente dolorido, como se tivesse sido pisado e esmagado pelo seu rodado, não controlava os intestinos e ansiava pelas inúmeras paragens para descer até á picada e defecar umas borras negras com um cheiro insuportável, ao mesmo tempo que também vomitava um liquido amarelado muito azedo.
A viagem estava a tornar-se num inferno que parecia interminável, sentia-me febril, com o corpo dorido. A diarreia e os vómitos não cessavam, mesmo depois do estômago e intestinos estarem completamente vazios, o que piorava o meu débil estado.
Ao cabo de algumas horas de suplício já não me encontrava com forças para subir para a camioneta, após as minhas constantes descidas ao improvisado W C, nem tão pouco me resguardava nos arbustos que ladeavam a picada e me transmitiam um pouco de privacidade. Simplesmente descia e agachava-me de cócoras entre os rodados, valia-me o meu camarada que me dava a mão e me puxava quase desfalecido para junto dele
Aproveitando uma das constantes paragens, o Farsola correu ao longo da coluna até encontrar um enfermeiro que trouxe consigo, este muito solicito e compadecido com o meu frágil estado viajou comigo durante 2 ou 3 km, mediu-me a tensão e obrigou-me a tomar 2 comprimidos LM, uns comprimidos tipo aspirina que eram receitados para todo o tipo de doenças, desde simples resfriados até ataques de paludismo, escusado será dizer que devido ao meu estado logo de seguida os vomitei.
O prestável do enfermeiro nada mais poderia fazer por mim e disse-me enquanto descia com a bolsa ás costas.
- Se entretanto não melhorares, assim que chegarmos á próxima base tomarei providencias para que sejas colocado a soro. Como tu sabes aqui não tenho condições para tratar de ti.
Ainda balbuciei um agradecimento enquanto ele corria para a sua viatura.
Da composição de cada grupo de combate com cerca de trinta homens, alem de um operador de transmissões com o seu rádio Racal Tr 28, também fazia parte um enfermeiro com a bolsa de enfermagem equipada com alguns utensílios de primeiros socorros, como gaze, ligaduras, injecções de soro anti-ofidico e para o paludismo, os ditos comprimidos LM e pouco mais. Quando nas extenuantes operações apeadas que poderiam durar vários dias, esta bolsa seria carregada ás costas, juntamente com o saco das rações e arma com respectivos carregadores.
MANUEL ALDEIAS

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Capítulo XII- E a estória continua

O sol brilhava com intensidade num céu azul e com um calor abrasador, a recordar-nos a todo o momento que estávamos em África. Contudo os constantes solavancos a que estávamos a ser submetidos, transportavam-nos á triste realidade de que não participávamos num alegre safari, antes pelo contrario, viajávamos desconfortavelmente na caixa de carga de uma camioneta como se de gado se tratá-se.
Agora atravessávamos uma região característica do Norte de Angola, com a estreita picada a passar por extensos vales totalmente cobertos de luxuriantes florestas de um verde intenso, de onde saíamos por vezes para contornarmos altos morros cobertos de denso capim doirado, que ondulava docemente ao sabor de uma fraca, mas sufocante brisa.
A marcha estava a decorrer a passo de caracol, demasiado lenta, o que me levava a concluir que os soldados estavam a percorrer alguns dos troços mais perigosos a pé. Lá para a frente da coluna de quando em vez ouviam-se tiros de arma G3, o que levou o meu companheiro a exclamar.
- Os nossos estão a fazer tiros de reconhecimento, mas os turras não são parvos e, mesmo que estejam ali emboscados não respondem.
Pela lentidão provavelmente também estariam a proceder á picagem da estrada á procura de minas enterradas. O método utilizado para detectar as perigosas minas escondidas na picada era muito rudimentar e, consistia numa vara de madeira com uma ponta afiada em ferro, com a qual os soldados caminhando vagarosamente na frente da coluna e, com todas as precauções iam picando a terra á procura da caixa de madeira em cujo interior se encontrava a temível arma, o que se revelava muito moroso e pouco eficaz.
Depois de muito tempo calado o Farsola que seguia no lado oposto ao meu, gritou-me despertando-me dos maus pensamentos que me toldavam a mente.
- É pá! Agora só o que faltava era os cabrões presentearem-nos com alguma mina.
- Pior será se a mina for conjugada com emboscada – Respondi eu receoso.
- Vira para lá essa boca. Não sejas agoirento – Rematou contrariado.
Pelo final da tarde e á semelhança do dia anterior, o céu que até aqui se apresentava de um belo e radiante azul, começa lentamente a carregar-se de grossas nuvens negras e, um violento vendaval acompanhado de chuva intensa, começa a cair sobre nós e sobre os restantes martirizados soldados que viajavam a peito descoberto nos bancos de madeira das viaturas.
O vento soprava com enorme intensidade e foi com dificuldade que abri o saco e retirei a capa camuflada que designávamos por ponche, quando a consegui vestir já me encontrava completamente encharcado, o mesmo acontecendo com o meu camarada que praguejava em altos berros, amaldiçoando os turras, a guerra e todos aqueles que dela tiravam partido.
MANUEL ALDEIAS



terça-feira, 24 de agosto de 2010

Capíulo XI- A rapariga do meu amigo Farsola, a Aurora.

Clareava o céu sob o imenso e deslumbrante verde da floresta Africana adivinhando mais um dia de tórrido calor, quando esta caravana de saltimbancos se colocou em movimento para aquela que tudo indicava fosse a ultima etapa até São Salvador do Congo.
O comandante da coluna informou-nos que íamos continuar a avançar em direcção ao Norte e á perigosa fronteira faltando-nos ainda algumas centenas de km e, que a situação era preocupante pois havia informações que apontavam para a actividade de vários grupos inimigos na zona e, pediu a todos que se mantivessem atentos e não descurassem a vigilância afim de não sofrermos mais dissabores.
Agora com a manhã a dar lugar á tarde, tínhamos deixado para traz uma vasta zona de floresta galeria, salpicada aqui e ali por grandes morros cobertos de capim como se fossem pequenas ilhotas perdidas no meio de um vasto oceano verde
Nesta nova paisagem da savana Africana com que agora deparávamos, o sol brilhava intensamente sob o doirado do capim e a caravana rodava vagarosamente ao sabor dos buracos da picada, quando o meu camarada olhando-me com olhar melancólico, desabafa, dizendo-me:
- Este vasto capinzal faz-me recordar as searas a perder de vista, junto da aldeia da minha rapariga.
- Então tu conheces a terra da tua Aurora? Perguntei eu.
- Se conheço, foi lá perto que passamos a semana de campo quando terminei a recruta em Beja.
O Farsola tinha conhecido a sua Aurora num baile de sopeiras na Rua do Coliseu. A bela rapariga de apenas 16 anos, servia como criada numa casa burguesa nas Avenidas Novas. Era explorada por uma patroa cruel, cínica e sem escrúpulos e abusada sexualmente ás escondidas pelo gordo do patrão, um careca bonacheirão proprietário de uma herdade no Ribatejo onde criavam touros de lide, tendo-a já obrigado a abortar clandestinamente por duas vezes.
O Farsola para a livrar destes patrões tiranos, arranjara-lhe trabalho num bar de alterne no Cais do Sodré frequentado por marinheiros, daí a ingressar no mundo da prostituição foi apenas um passo
Foram viver para um quarto alugado que ficava ao cimo da Calçada da Gloria e, que de futuro se tornaria de grande utilidade por ficar apenas a dois passos do Bairro Alto e da Boáte Monte Negro, para onde ela acabaria por ir trabalhar mais tarde.
A Aurora era uma bonita e jovem moçoila muito morena, de longos cabelos e olhos negros, não lhe faltando clientes a quem cobrava 20 escudos por pouco mais de meia hora de prazer
- Não sou ciumento. Mas não permitia que a minha rapariga fizesse noites. Essas eram para mim – contava-me ele com nostalgia, recordando as noites de amor tórrido que passara com a sua amada, contando o dinheiro que esta ganhara durante o serão e, prosseguia dizendo.
– Quando não andava a fazer automóveis em Cascais juntamente com o meu grupo, via-me obrigado a exercer um controle cerrado sobre a minha rapariga, não a podia deixar andar com muito dinheiro, pois podia ser roubada ou agredida por algum gajo despeitado. Sabes Mike, a vida de chulo não é um mar de rosas como muitos julgarão. As gajas da vida têm que levar tareia quase todos os dias para se sentirem que são alguém e não apenas objectos sexuais.
A Aurora costumava enviar-lhe periodicamente uma nota de 500 escudos escondida nas amorosas cartas que lhe escrevia. A correspondência era sistematicamente violada e o dinheiro desaparecia, para evitar estes roubos decidira remeter o dinheiro em valor declarado, esse processo requeria uma deslocação á estação dos correios, mas era um envio totalmente seguro.
Ultimamente estas remessas estavam a ser cada vez mais espaçadas e o meu camarada andava triste e desconfiado de que a sua Aurora pudesse ter arranjado outro chulo e, pior ainda que esse a proibisse de lhe enviar dinheiro.
Para esclarecer essa situação resolvera escrever ao seu amigo Chico Bolinhos afim de lhe pedir que controlasse a Aurora e, avisa-se se notava algo de estranho com a sua rapariga.
O Chico Bolinhos também ele chulo de profissão no Bairro Alto, não tinha perdido tempo e enviara-lhe uma extensa carta dias antes da partida para Luanda. Entre um chorrilho de preocupações sobre o comportamento da rapariga, ainda lhe transmitira que se constava que a Aurora ficara grávida.
Ao comunicar estas dúvidas á Aurora esta respondera-lhe que não, que era apenas um pouco de gordura a mais e a idade também não perdoava, pois há praticamente dois anos que se não viam. Também lhe contara que há dois ou três meses atrás fizera mais uma visita á parteira da Praça do Chile e que o serviço tinha corrido tão mal que fora obrigada a recorrer ás urgências do Hospital de São José, acabando por lá ficar internada quase uma semana.
- Pelo menos uma semana esteve a minha rapariga sem trabalhar. Coitada, faço-lhe muita falta! Estas gajas da vida sem um homem por perto não se sabem governar – lamentava-se saudoso o meu camarada.
MANUEL ALDEIAS