terça-feira, 28 de dezembro de 2010

MEMÓRIAS de OUTRORA - III

(Continuação)
A viagem de regresso continuava a decorrer sem problemas devido em parte às enormes precauções que estavam a ser tomadas.
Os guerrilheiros espiavam todos os movimentos da tropa, escondidos na densa selva que nos rodeava e tinham observado a nossa viagem. Muito provavelmente como era hábito, iriam aproveitavar a viagem de regresso para nos atacarem emboscados, beneficiando da surpresa e da escuridão tenebrosa da noite
Ao aproximarmo-nos da curva da morte um local onde habitualmente montavam fatídicas emboscadas, todos os soldados saltaram das viaturas e prosseguiram a pé em fila indiana pelas duas bermas da picada
Repentinamente no silêncio da noite ouvem-se fortes rajadas de metralhadora vindas da frente da coluna.
Eu que seguia com o rádio às costas, atiro-me rapidamente para o chão, caindo numa enorme poça de água.
Numa impressionante tranquilidade o colega que seguia na minha pegada, baixa-se e grita-me.
- Levanta-te mike. Não tenhas medo, são os nossos a fazerem tiros de reconhecimento.
Levantei-me de um salto, ensopado em água e lama, assustado e envergonhado, contudo devido à escuridão os restantes camaradas não se aperceberam do meu estado.
Ultrapassada esta tenebrosa curva, subimos de novo para as viaturas e, então reparo num soldado que se encontrava deitado numa maca em cima de uma berliet, ardendo em febre e delirando acometido pelo paludismo. Então tirei o grande lenço que usávamos ao pescoço para nos proteger das nuvens de pó levantadas pelas viaturas, ensopei-o em água do cantil e passei-lhe pela testa. Quando deu acordo de si agradeceu-me dizendo que era conhecido por Azeiteiro e que tal como eu viera em rendição individual, tendo chegado há cerca de dois meses a este fim do mundo.
Continuei junto dele durante o resto da caminhada, repartindo consigo a água do meu cantil e oferecendo-me para ajudar no transporte da maca até à pequena enfermaria da base, onde o entregamos ao enfermeiro de serviço.
Na tarde do dia seguinte à nossa chegada a Nambu, fui visitá-lo à enfermaria para lhe levar um pouco de conforto e perguntar se necessitava de algum préstimo.
Tive dificuldade em reconhecê-lo, barbeado e sentado na cama a ler uma fotonovela. De imediato me começou a contar a sua história de vida. Os pais – ele estivador, ela mulher-a-dias – separaram-se era ele pequeno. Foi então viver com a avó, com quem acabaria por ser criado. Assim que terminou a 4ª classe começou a trabalhar numa mercearia na Ribeira do Porto. A partir desse primeiro emprego passou por vários, onde permanecia por pouco tempo. Ultimamente era porteiro de uma boite na Foz e dedicava-se a explorar prostitutas, daí a ser alcunhado entre os soldados que conheciam o seu passado por Azeiteiro, nome dado em calão aos chulos e proxenetas. Para confirmar o que me contava, puxou de uma pequena caixa de madeira que guardava debaixo da cama com dezenas de cartas e aerogramas recebidas da Metrópole.
Mostrou-me várias cartas de pelo menos três raparigas diferentes, afirmando.
- Estás a ver Mike. Geralmente vêm acompanhadas de uma nota de cem ou até de quinhentos escudos. Apenas a Ofélia não me envia dinheiro. Coitada!
- Coitada! Porquê? Perguntei intrigado.
- Presentemente encontra-se presa em Tires. Foi acusada de prostituição e de ter agredido com uma garrafa um cliente que por azar era polícia. Fugiu de Custóias, voltou a ser detida e apanhou dois anos de cadeia. Tantos como eu de Angola – e continuou – quando chegar á Metrópole caso-me com ela, que é a sua maior ambição.
(Continua)

sábado, 18 de dezembro de 2010

MEMÓRIAS DE OUTRORA - II

(Continuação)
Logo após a descarga do correio e de outros bens de primeira necessidade, já com o sol a esconder-se por detrás da linha de horizonte e o céu a matizar-se de belos tons de vermelho e dourado, demos inicio á arriscada viagem de regresso a Nambu.Este trajecto já de si repleto de vários perigos, adivinhava-se ainda mais medonho devido à perigosa e sempre incerta noite.
Para relatar esta tremenda caminhada socorro-me do belo poema do conhecido poeta e deputado Manuel Alegre.

As luzes de Nambuangongo


Brilham as luzes de Nambuangongo

que de longe parecem perto e perto

parecem longe porque são assim as luzes

nos olhos dos soldados quando à noite

vão de Quipedro a Nambuangongo



Não vás pensar que são as luzes da tua aldeia.

Não há lugar em Nambuangongo

para a ternura da tua aldeia.

Brilham na noite camarada são enganos

não vás pensar que são as luzes da tua aldeia.



Amigo escuta se acontecer

teres saudades fecha os teus olhos

não queiras ver as luzes que são longe e perto

e perto e longe não queiras ver

amigo as luzes de Nambuangongo.



Eu sei que custa. Dentro de ti

há outras luzes que são luzes de Nambuangongo.

E a bala espreita eu sei que custa

posso ser eu podes ser tu

entre Quipedro e Nambuangongo.



E há outras luzes noutros caminhos de outras aldeias.

Essas porém não são as luzes que nos esperam.

E não verás rostos amados. E não terás

um fogo ardendo para ti que vens de longe.

Ninguém lá onde brilham as luzes para ninguém.



Brilham na noite camarada e são enganos

ai são enganos essas luzes perto e longe.

Dentro de ti uma candeia. E não verás

rostos amados. Fecha os teus olhos camarada

são só as luzes de Nambuangongo.



Morrer podemos. Mas não chorar. Lágrimas?

Só essas lágrimas que ao longe brilham

lágrimas luzes de Nambuangongo. Choram por nós

brilham por nós mas são enganos camarada

não são as luzes da tua aldeia.


(Continua)....

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

MEMÓRIAS de OUTRÓRA

Capítulo I
Vou recuar no tempo. A um tempo longínquo e cruel de há muitos, muitos anos quando cheguei a Angola e a Nambuangongo, quartel militar situado no norte desse país a cerca de 180 km de Luanda.Aí chegado tive um pesadelo, ou melhor uma alucinação muito contundente e, é essa amarga alucinação que vou passar á escrita como obra de ficção. Portanto factos, pessoas e mesmo situações narradas não existiram nem sequer aconteceram, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
 Nambuangongo era uma fortaleza militar em pé de guerra, espraiava-se por dois grandes morros com tropa de varias especialidades. Eu fora integrado como soldado de transmissões numa companhia operacional com o nome de guerra “ Os Carolas “. As operações que decorriam na selva eram da nossa responsabilidade.
Como acontecia na maioria das inúmeras bases do exército Português espalhadas pela imensidão da selva Angolana, os soldados encontravam-se instalados em barracas de madeira cobertas por chapas de ferro zincadas, onde suportavam o intenso calor Africano e, aí vegetavam em situação degradante completamente isolados da civilização e dos seus meios de conforto.
Dentro da grande cerca de arame farpado, alem do bar dos soldados também existiam duas cantinas civis onde estes afogavam em cerveja as suas mágoas e as suas angústias.
Junto a esta base encontrava-se instalada uma Sanzala habitada por ex-guerrilheiros e seus familiares, que se entregavam ou eram capturados pelas nossas tropas. Estes antigos guerrilheiros depois de treinados e preparados constituíam um corpo de milícias muito eficazes e bastante cruéis designados por G E (Grupos Especiais) que alem de garantirem a segurança da Sanzala, também executavam operações militares, sós ou juntamente com as nossas tropas de quem dependiam militarmente, como eram profundos conhecedores do terreno e do inimigo também nos serviam de guias nas arriscadas operações que desencadeávamos pelo interior da densa e quase impenetrável selva.
Cheguei em rendição individual, isto é só, afim de substituir um camarada morto em combate, por esta altura já os meus futuros camaradas tinham cumprido um ano de guerra nesta inóspita e perigosa região dos Dembos.
Viria a ficar conhecido por Mike, apelido carinhoso de maçarico (novato) e logo no dia imediato á minha chegada saí em coluna militar.
Como novato que era e sem pratica alguma destas coisas da guerra, junto de mim sentado no banco corrido em ripas de madeira do hunimog, seguia o meu colega de transmissões o Pedreiras que logo me avisou.
- Se tivermos que saltar do hunimog, em caso de emboscada não te esqueças de arrastar contigo o rádio. Debaixo de fogo é muito complicado subir de novo à viatura para o recuperar e, ele é o único elo de comunicação com a sede.
Íamos fortemente armados, alem das armas individuais G3, também levavamos granadas, bazucas, morteiros, diagramas e metralhadoras pesadas montadas em tripés com escudos metálicos de protecção presos ás caixas de carga das viaturas
O medo e a tensão faziam com que por detrás de cada árvore imaginasse um inimigo, apetecia-me puxar o dedo suado que levava colado ao gatilho da G3 e disparar para a picada e para as grossas arvores que a cercavam
Dirigíamo-nos para uma base provisória, formada por um circulo de tendas de campanha no cimo de um morro situado ao lado da picada, era aqui que ao final do dia eram recolhidas as máquinas da Engenharia Militar que procediam ao arranjo da picada que saía de Nambu em direcção a Quipedro.
À minha chegada os soldados que faziam a protecção da base rodearam-me curiosos para saberem novidades da Metrópole, todos eles viviam em situação precária e isolados da civilização há mais de um ano. Aqui os soldados pareciam zombes a vaguearem para um lado e para o outro, andavam vestidos cada um de sua maneira, todos em tronco nu, alguns de calções, outros com calças camufladas muito coçadas e com grandes rasgos que tentavam colar com largas tiras de adesivo daquele utilizado nos primeiros socorros. As grandes barbas e cabelos desalinhados ajudavam a compor esta visão surrealista.
(CONTINUA)... 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Capítulo XXVII

ÚLTIMO AEROGRAMA ESCRITO PELO FARSOLA À SUA AMADA.
Querida estou muito feliz, acabei de ser chamado junto do capitão, para me comunicar que finalmente chegou a mensagem a ordenar o meu regresso à Metrópole.
Partirei amanhã cedo numa escolta militar para São Salvador e daí embarcarei rumo a Luanda no avião de carga Nordatlas, aproveitando o vôo de regresso desse avião que duas vezes por semana transporta alimentos frescos desde Luanda.
Espero que da próxima vêz que te escreva já seja de Luanda a comunicar-te a data da minha chegada a Lisboa.
O regresso será realizado a bordo de um dos dois Boeing 707 ao serviço do exército e adquiridos em 2ª mão à TAP, segundo me dizem efectuam a viagem em cerca de 9 horas. Nada comparado aos longos dez dias que demorei a cá chegar a bordo do paquete Vera Cruz.
Estive há pouco, oxalá que pela última vez, a admirar um pôr-do-sol maravilhoso com as tonalidades de vermelho e de dourado a esconderem-se por detrás da imensa e enigmática floresta virgem. Só aqui perdidos na imensidão remota da selva Africana se consegue contemplar semelhante beleza.
Em boa hora deixo para traz este buraco no cu de Judas, aqui passa o tempo que não passa, sinto-me perdido no meio da escuridão e do perigo iminente, as noites são arrepios de medo. Como anteriormente te contei das diversas bases das nossas tropas que eu conheci ao longo destes dois anos, esta é das poucas em que comemos com a arma G3 na mão, ou como o meu camarada Mike costuma dizer, comemos com um olho na marmita e outro no arame farpado.
O inimigo está cada vez mais atrevido, obriga-nos a dormir vestidos e calçados nos abrigos lamacentos disparando tiros isolados durante as temíveis e intermináveis noites, o que faz com que vivamos num elevado estado de alerta.
Em menos de uma semana sofremos dois grandes ataques, no último o inimigo avançou sobre nós com um enorme poder bélico e elevado numero de efectivos, que segundo as informações militares seria composto por cerca de 250 homens comandados pelo temido Pedro Afamado, a sua intenção era tomarem de assalto a nossa posição e manterem o estatuto de ocupantes, o que para a FNLA seria um valioso trunfo a exibir nas negociações com o governo provisório de Lisboa, que três meses passados sobre o 25 de Abril continua indeciso sobre o futuro de Angola.
Ontem estive a ouvir a emissora dos guerrilheiros, a Maria Turra como é conhecida entre os soldados, a locutora afirmava que os valorosos combatentes nacionalistas tinham desferido um violento ataque ao posto do Luvo, no qual alem de infligirem vários mortos á tropa colonialista, também destruíram todas as instalações e apoderaram-se de armas, rádios e outros materiais.
É a guerra de contra informação recheada de mentiras, nós felizmente e ao contrário daquilo que a Maria Turra declarava apenas sofremos alguns feridos ligeiros, o inimigo pelo contrário abandonou na fuga 5 mortos e diverso material de guerra e de enfermagem.
Manuel Aldeias 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Capítulo XXVI

AEROGRAMA ESCRITO PELO FARSOLA À SUA QUERIDA AURORA
Querida espero que ao receberes este meu aerograma te encontres de boa saúde que eu felizmente estou bem.Aqui onde agora me encontro neste buraco infecto chamado Luvo, junto á linha de fronteira norte com o Congo, é um local remoto e bastante isolado, não existem quaisquer populações civis, todos se refugiaram no outro lado da fronteira quando a guerra rebentou em 1961, para onde quer que estendamos a vista só se vislumbra capim muito alto ou florestas virgens cerradas.
Aqui no cu do mundo até a tropa é reduzida, apenas somos dois grupos de combate totalizando cerca de 50 soldados. Como na maioria dos inúmeros aquartelamentos do exército Português espalhados pela imensidão do sertão Angolano vivemos em condições miseráveis, instalados em barracas de madeira, cobertas com chapas de ferro zincadas, onde somos obrigados a suportar o intenso calor Angolano. A água é recolhida num ribeiro próximo, afluente do rio Luvo e transportada num depósito puxado por um veículo hunimog, os guerrilheiros por vezes esperam-nos emboscados junto do local de recolha do precioso líquido e por conseguinte não podemos descurar a segurança, temos que nos deslocar sempre atentos e fortemente armados.
Só durante a noite temos energia eléctrica produzida por um monótono gerador, este tem como principal finalidade iluminar a periferia da pequena base, facilitando o trabalho das sentinelas que nos garantem a segurança durante as intermináveis e perigosas noites.
Em toda a volta deste pequeno quadrado com perto de 100 metros de lado, existe uma cerca de arame farpado e um vala funda, onde nos refugiamos durante os ataques inimigos, também não dispomos de fogões a gás ou eléctricos, para cozinharmos os alimentos socorremo-nos da muita lenha existente nas densas florestas que nos cercam.
Ao menos quando da minha estadia em Nambuangongo alem de haver muita tropa, também era rara a semana em que não fossemos visitados por alguma coluna militar de passagem por aquele estratégico local. Dali partia uma picada que seguia para norte até Quipedro e que passava por Quixico e pelo pequeno destacamento que protegia a ponte sobre o rio Lué e, também uma outra que partia na direcção do por do sol até Zala e, que passava pela Madureira e pelas temíveis e de má memoria curvas do bico de pato e da camioneta vermelha.
Tal como aqui, também Nambuangongo era cercado pela cerrada selva, tínhamos por vizinhos a perigosa e densa floresta virgem do Canacassala, a tal onde o MPLA tinha instalado o Quartel General da sua 1ª Região Militar, sempre que nos deslocávamos para aquelas bandas éramos corridos a tiro.
Recordo-me daquela vez em que as altas chefias militares em Luanda, decidiram que a picada chamada via-lactea e que atravessava aquela terrível e perigosa mata, deveria ser limpa do denso matagal que a havia invadido para poderem mais facilmente chegar perto do coração inimigo, no entanto e apesar do grande numero de tropas envolvidas na segurança das máquinas de engenharia da Junta Autónoma das Estradas de Angola, o inimigo só nos permitiu chegar ate junto da ponte sobre o rio Onzo.
Fernando Farinha repórter da revista semanal Noticia que é publicada aos sábados em Luanda, acompanhou-nos para fazer a reportagem daquilo que as autoridades militares Portuguesas propagandeavam insistentemente, que os guerrilheiros não controlavam nenhuma parte do território Angolano e que as nossas tropas se deslocavam por todo o imenso território. Era uma pura mentira.
Olha, aquele meu camarada, o transmissões, a quem nós chamamos Mike, não sei se irá aguentar os dois anos de comissão, está muito magro, pesa menos de 45 KG e o rádio que transporta ás costas é muito pesado com cerca de 14 KG.
Tenho muita pena dele e por vezes nas operações apeadas ajudo-o a transportar o rádio. Quando estávamos na Força de Intervenção e nos deslocávamos para o mato, o exército contratava dois trabalhadores Bailundos, um para o ajudar a transportar o rádio e outro para ajudar o enfermeiro no transporte da bolsa de enfermagem. Agora aqui como não existem populações civis isso é impossível, está bem que aqui nas operações apeadas não se anda tanto a pé, no entanto esporádicamente aparecem algumas bastante extensas, em que temos que palmilhar dezenas e dezenas de quilómetros pelas cerradas e quase impenetráveis florestas virgens. Nessas operações algumas delas com a duração de 4 e 5 dias, temos que transportar além da arma G3 e de 4 carregadores à cinta, um saco ás costas com as rações de combate e a água para todos esses dias, eu por vezes ainda coloco no saco uma caixa de balas como reserva, não vá o diabo tecê-las.
Manuel Aldeias