terça-feira, 14 de dezembro de 2010

MEMÓRIAS de OUTRÓRA

Capítulo I
Vou recuar no tempo. A um tempo longínquo e cruel de há muitos, muitos anos quando cheguei a Angola e a Nambuangongo, quartel militar situado no norte desse país a cerca de 180 km de Luanda.Aí chegado tive um pesadelo, ou melhor uma alucinação muito contundente e, é essa amarga alucinação que vou passar á escrita como obra de ficção. Portanto factos, pessoas e mesmo situações narradas não existiram nem sequer aconteceram, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
 Nambuangongo era uma fortaleza militar em pé de guerra, espraiava-se por dois grandes morros com tropa de varias especialidades. Eu fora integrado como soldado de transmissões numa companhia operacional com o nome de guerra “ Os Carolas “. As operações que decorriam na selva eram da nossa responsabilidade.
Como acontecia na maioria das inúmeras bases do exército Português espalhadas pela imensidão da selva Angolana, os soldados encontravam-se instalados em barracas de madeira cobertas por chapas de ferro zincadas, onde suportavam o intenso calor Africano e, aí vegetavam em situação degradante completamente isolados da civilização e dos seus meios de conforto.
Dentro da grande cerca de arame farpado, alem do bar dos soldados também existiam duas cantinas civis onde estes afogavam em cerveja as suas mágoas e as suas angústias.
Junto a esta base encontrava-se instalada uma Sanzala habitada por ex-guerrilheiros e seus familiares, que se entregavam ou eram capturados pelas nossas tropas. Estes antigos guerrilheiros depois de treinados e preparados constituíam um corpo de milícias muito eficazes e bastante cruéis designados por G E (Grupos Especiais) que alem de garantirem a segurança da Sanzala, também executavam operações militares, sós ou juntamente com as nossas tropas de quem dependiam militarmente, como eram profundos conhecedores do terreno e do inimigo também nos serviam de guias nas arriscadas operações que desencadeávamos pelo interior da densa e quase impenetrável selva.
Cheguei em rendição individual, isto é só, afim de substituir um camarada morto em combate, por esta altura já os meus futuros camaradas tinham cumprido um ano de guerra nesta inóspita e perigosa região dos Dembos.
Viria a ficar conhecido por Mike, apelido carinhoso de maçarico (novato) e logo no dia imediato á minha chegada saí em coluna militar.
Como novato que era e sem pratica alguma destas coisas da guerra, junto de mim sentado no banco corrido em ripas de madeira do hunimog, seguia o meu colega de transmissões o Pedreiras que logo me avisou.
- Se tivermos que saltar do hunimog, em caso de emboscada não te esqueças de arrastar contigo o rádio. Debaixo de fogo é muito complicado subir de novo à viatura para o recuperar e, ele é o único elo de comunicação com a sede.
Íamos fortemente armados, alem das armas individuais G3, também levavamos granadas, bazucas, morteiros, diagramas e metralhadoras pesadas montadas em tripés com escudos metálicos de protecção presos ás caixas de carga das viaturas
O medo e a tensão faziam com que por detrás de cada árvore imaginasse um inimigo, apetecia-me puxar o dedo suado que levava colado ao gatilho da G3 e disparar para a picada e para as grossas arvores que a cercavam
Dirigíamo-nos para uma base provisória, formada por um circulo de tendas de campanha no cimo de um morro situado ao lado da picada, era aqui que ao final do dia eram recolhidas as máquinas da Engenharia Militar que procediam ao arranjo da picada que saía de Nambu em direcção a Quipedro.
À minha chegada os soldados que faziam a protecção da base rodearam-me curiosos para saberem novidades da Metrópole, todos eles viviam em situação precária e isolados da civilização há mais de um ano. Aqui os soldados pareciam zombes a vaguearem para um lado e para o outro, andavam vestidos cada um de sua maneira, todos em tronco nu, alguns de calções, outros com calças camufladas muito coçadas e com grandes rasgos que tentavam colar com largas tiras de adesivo daquele utilizado nos primeiros socorros. As grandes barbas e cabelos desalinhados ajudavam a compor esta visão surrealista.
(CONTINUA)... 

12 comentários:

Unknown disse...

Aguardo com ansiedade o próximo capítulo.

Abraço.

Carla Ceres disse...

Eu também vou esperar pela continuação. Está interessante e assustador. Abraço!

Janaina Cruz disse...

As vezes eu fico imaginando uma fortaleza, pessoas acuadas lá dentro, sem conseguir prever o pode acontecer, pessoas camufladas ouvindo o zumbidos de balas e explosões, eu acho que ficaria louca meu amigo, meus fios de razão iriam voar pelo vento...rs
O que acontece quando um soldado perde a razão? O que fazer com um homem que não atina mais? Fiquei curiosa... rs
Um grande abraço meu amigo.

alma disse...

Depois de ler este tempo que foi de tantos, aguardo por mais.

Consegues nas palavras, transpor a verdade em nítidas imagens.

bj

franciete disse...

Meu bom amigo, como tenho feito até aqui lido e relido todas as suas histórias, jamais eu posso crer que esta também não seja verdadeira. Não sei porque disse, mas lá terá as suas razões. Por vezes passam-se coisas em nossas vidas, que do mais fundo do nosso intimo, queria-mos que elas não fossem reais.
Beijinhos de luz e muita paz

Regina Laura disse...

Manuel, incrível ler algo que mais parece ficção, e pensar que você realmente viver tudo isso.
Uma história de vida para ser narrada mesmo!
Dá um livro e tanto.
Aguardando a continuação...
Obrigada pelo carinho sempre presente ;)
Beijo

Carlos Albuquerque disse...

Pois é, meu caro, essas memórias não nos largam, e é bom que as passe à escrita, assim numa espécie de exorcismo...
Também andei por Nambuangongo, Quipedro, Quitexe e por aí fora, na região dos Dembos, embora a minha bateria de Artilharia tivesse ficado aquartelada na Buela, lá mesmo encostada à fronteira Norte, para cima de Cuimba, em sentido contrário ao de Maquela do Zombo.
Abraço e continue.

Anónimo disse...

Manuel,

Sua narrativa faz com que continuemos a aguardar por mais ...



Bjo e um Dia feliz !

Ezequiel Luz disse...

Companheiro, depois de tantos anos de convivência, não fazia a mínima ideia desta tua veia de narrador de histórias, fique deveras admirado e ao mesmo tempo contente com esta tua vertente literária; já pensaste e editar estes textos? Olha que anda por ai quem publique coisas que, comparadas com o que escreves nem aos calcanhares te chegam.
Um abraço
Ezequiel Luz

José disse...

Pois Manuel!
É bem mais fácil lidar hoje aqui com o teclado, que com a G3 e mais uma mão cheia de tranquitena que tinham-mos que carregar.

Anónimo disse...

Olá, Manuel!

Passados que são cerca de 35 anos sobre o fim da guerra, para quem é agora jovem difícil se torna imaginar que ela de facto tenha existido, e o que ela significou para tantas famílias, então.E, mais ainda, o que ela implicou para muitos daqueles que nela participaram, os sacrifícios e as mortes a ela associadas.
Escrever e ler sobre ela é uma forma de a não esquecer, e estas e outras narrativas são para isso um valioso contributo.
Cá ficamos à espera do resto.

Abraço amigo.
Vitor

Antonio S. Leitão. disse...

Ola Amigo;
Chovia como hoje. Novembro de 72," descobríamos"a tristemente célebre localidade ne Nambu. Tínhamos passado a noite perto da B.-Baixa, devido à lama na qual alguns camiões se atolaram. Evitado sera dizer que dormimos, mas nao fomos ao menos atacados. Obrigado pela tua narrativa. Devia ser criada uma associação dos veteranos de Nambu. e que muitas outras verdades sejam contadas. Evidentemente que nao fomos so nos que sofremos as agruras da guerra, mas que cada um conte as suas. Continua. Abraço e obrigado.