quarta-feira, 29 de setembro de 2010

CAPÍTULO XVIII

MEMÓRIAS de OUTRÓRA
A noite apresentava-se magnifica e muito quente, num céu salpicado por milhões e milhões de reluzentes estrelas a brilharem na escuridão completamente livre de nuvens e poluentes, quando á saída do refeitório encontro sentados num banco corrido em madeira e em amena cavaqueira o Lombriga meu antigo colega da Escola Emídio Navarro em Almada, juntamente com um seu amigo de Cacilhas, electricista na Lisnave.
Ao ver-me, o Lombriga chamou-me para junto deles, enquanto ia dizendo que nos Estados Unidos se estava a assistir a uma grande contestação á guerra do Vietname sendo a cantora folk, Joan Baez uma das vozes mais activas e virando-se para mim perguntou-me.
- Lembras-te Mike? Quando nós os dois, juntamente com o Parafuso e o Violas nossos colegas do Arsenal do Alfeite, fugimos á frente da policia de choque no Estoril?
- Se me lembro! Isso foi em 26 de Agosto de 1970, quando pretendíamos assistir ao festival de música na mata dos Salesianos.
Este festival fora realizado pela Junta de Turismo da Costa do Sol, juntamente com a participação de José Cid e tudo parecia que estava a decorrer muito bem, com a confirmação da actuação do Quarteto 1111, dos Sheiks, Rui Mingas e muitos outros, quando em cima da hora o Marcelo decidira cancelá-lo.
Centenas e centenas de jovens desconhecendo a proibição de última hora, começaram logo a seguir ao almoço a deslocarem-se para o Estoril.
O Lombriga recordava ainda.
- O nosso grupo de Arsenalistas abastecido com sandes e algumas bebidas seguimos de Cacilheiro até ao Cais do Sodré, onde apanhamos o comboio para o Estoril.
O amigo de Cacilhas atirava.
- Nas ruas circundantes da mata dos Salesianos e por detrás do Casino, encontravam-se escondidos vários autocarros repletos de polícias armados de capacetes, cassetetes e escudos, de repente e sem qualquer provocação da nossa parte começaram a desancar o pessoal.
Eu interrompi para dizer.
- Recordo-me perfeitamente de que ao regressar-mos de comboio e, ao chegarmos ao Cais do Sodré já o vespertino Dário Popular noticiava na primeira pagina que o festival fora cancelado e, em letras mais pequenas que os jovens tinham provocado a policia de choque obrigando esta a reagir.
O amigo de Cacilhas também tinha sido um dos vários agredidos pelos lacaios do Capitão Maltês, o terrível comandante dessa detestável e odiada policia e recordou-nos que cerca de um ano antes, também se tinha realizado um festival do género na ilha de Wight em Inglaterra que juntara mais de 250 000 jovens, vindos de vários países. No entanto aquele que reunira maior número de participantes fora o celebre festival de Woodstok nos Estados Unidos, que juntara durante três dias cerca de meio milhão de pessoas, realizado entre os dias 15 e 18 de Agosto desse mesmo ano de 1969.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Convivio dos Felinos

A todos aqueles que em locais tão distantes como Austrália, Canadá, Russia e cerca de mais vinte países, estão a acompanhar esta minha história e que já se aproximam a passos largos dos dois milhares, os meus sinceros agradecimentos.
Hoje porem vou abrir um parêntesis para falar do 25º almoço de confraternização dos Felinos.
Este evento realizou-se no último sábado dia 25 de Seembro, nos belos jardins da casa do nosso anfitrião António Mucharreira, ex-alferes miliciano da C. CAV. 8453 “ Os Felinos” que estiveram em Angola de 1973 a 1975 mais precisamente junto da fronteira norte, num buraco infecto do cu de judas chamado Luvo e tambem em Mamarrosa.
A concentração teve lugar junto ao memorial dos ex- combatentes do Ultramar em Freixoeira no concelho de Torres Vedras, onde após guardarmos um minuto de silencio em memoria dos camaradas falecidos, depusemos um lindo ramo de flores.
Seguiu-se o animado repasto ao ar livre, em que os diversos participantes exibiram as mais variadas iguarias características das suas terras de origem, como carapaus alimados, chanfana de cabra, leitão á Bairrada e tantos outros que se tornaria fastidioso estar aqui a enumerá-los a todos.
Durante o convívio tivemos ocasião de admirar a vasta e rica colecção de azulejos antigos, que ornamentam os jardins desta magnifica casa senhorial, alguns deles remontando ao século XVII.
Em nome de todos os participantes quero agradecer a maneira simpática e hospitaleira como fomos recebidos. Não podendo deixar de enaltecer o enorme trabalho e canseira que os donos da casa, com especial destaque para a esposa D. Anabela, tiveram para poderem receber condignamente e com tanto carinho este grupo de Felinos e seus familiares.
O convívio do próximo ano de 2011, será realizado pelo felino João Valente na Veneza Portuguesa, a linda cidade de Aveiro, em data a anunciar futuramente.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

CAPÍTULO -17

O paludismo

Extremamente pálido, alagado em suores, respiração ofegante e com um braço ligado a um fino tubo, por onde gotejava lentamente um liquido incolor que eu identifiquei como sendo soro fisiológico.
Ali estava postado numa cama da pequena enfermaria militar, corpo inerte, completamente nu, apenas resguardado por uma ponta de lençol que mal lhe cobria as partes mais íntimas. Não o reconheci de imediato, tal o seu débil estado, mas após um olhar mais detalhado, identifiquei-o pelo seu cabelo preto, liso e bastante ralo, com entradas pronunciadas.
- Farssola! Farssola! Acorda sou o Mike! – Bem o chamei, no entanto manteve-se com os olhos semiabertos e sem dar acordo de si. Apenas a sua respiração arquejante me indicava que o meu amigo e camarada de odisseia continuava vivo. Estava um farrapo, uma débil amostra daquele rapaz atrevido, gingão e rufia que comigo viajara desde Luanda.
Após a nossa chegada a São Salvador do Congo, o meu amigo Farsola fora internado na pequena enfermaria do quartel acometido duma grave crise de paludismo com febres altíssimas, vómitos, dores de cabeça e intenso mal-estar, o seu estado era de tal modo confrangedor que o médico militar decidira-se prontamente pelo seu internamento e que lhe fosse de imediato aplicado um balão de soro. Tendo o enfermeiro me confidenciado que se não melhorasse nas próximas 24 horas, seria evacuado para o Hospital Militar de Luanda no avião militar Nordatlas que voava até São Salvador duas vezes por semana.
No entanto passados os primeiros dois dias o seu estado tinha melhorado consideravelmente e o médico decidira retirar-lhe o soro.
O Farssola era um fumador inveterado, chegando a fumar três maços de cigarros por dia. Como estava sem dinheiro e o vicio era muito forte, emprestei-lhe o pouco que ainda me restava com o qual comprou um maço de cigarros e, guardando o restante disse-me.
- Se não te importas, fico com o resto da grana para investir no jogo da lerpa logo á noite com os outros doentes.
- Está bem. Seja como queiras – Respondi contrariado.
Nessa mesma noite antes de me deitar voltei a visitá-lo, não parecia o mesmo, estava  muito bem disposto e  segundo me disse já não tinha arrepios de febre desde o meio da tarde. Com um sorriso irónico contou-me que já tinha ganho alguma grana ao jogo, e procurando por debaixo da almofada, extraiu uma velha carteira de cabedal muito coçado de onde retirou alguns Angolares que estendeu na minha direcção dizendo.
- Toma lá Mike. Para beberes uma bujeca fresca e comprares-me outro maço de tabaco. O restante é para eu voltar a investir amanhã no jogo, se o cabrão do paludismo me deixar.
O paludismo também conhecido por malária, é provocado pela picada da fêmea dum determinado mosquito, que alem de provocar dores de cabeça e náuseas, também se caracteriza por períodos de altas febres alternadas com outros de aparentes melhorias.



domingo, 19 de setembro de 2010

POR ANGOLA ACIMA

Parte 16
Devido ao rápido anoitecer, o céu carregara-se rápidamente de inúmeras estrelas brilhantes e, um breve clarão subia por detrás de um distante morro. Era a lua cheia em todo o seu esplendor, que ajudava a dissipar as densas trevas que escureciam a frondosa mata e nos dava as boas vindas a São Salvador do Congo.
No entanto a caminhada decorria com lentidão e, já a noite ia bastante avançada quando chegamos ao final de mais esta etapa, pela longa odisseia que estávamos a realizar por Angola acima.
Enquanto os soldados da escolta montavam segurança á coluna, nós completamente ensopados em água, lama e suor, encaminhamo-nos para um quartel que funcionava como Adidos e onde iríamos permanecer enquanto esperávamos por outra coluna que nos conduzisse ao Luvo. Este pequeno quartel onde agora nos dirigiamos ficava situado na periferia de São Salvador, mas ainda dentro da cerca de arame farpado que cercava esta cidade, que era a capital do distrito do Zaire e a maior e mais importante da região, contudo não seria muito maior que qualquer das vilas que nós conhecíamos na Metrópole.
O cabo quarteleiro já dormia e perante o nosso pedido, para que nos atendesse e desse guarida resmungou ensonado.
- Isto não é horas de me virem acordar. Podem tomar banho caso queiram.
Desenrasquem-se. Amanhã pela manhã logo os atendo.
E devido á nossa insistência, levantou o mosqueteiro que protegia a sua cama dos mosquitos e ainda ameaçou.
- Tenham tento na língua, se não amanhã pagam as favas.
Não sei o que queria dizer com esta ameaça. Descobrimos os chuveiros improvisados com uns bidões, que felizmente se encontravam atestados de água e tomamos um retemperador e reconfortante banho.
De seguida com a trouxa ás costas e as armas a tiracolo, encaminhamo-nos para o restaurante “Cressa”, que apesar do adiantado da hora se encontrava repleto de soldados pertencentes á protecção da coluna. Aqui comemos um belo bife de pacassa acompanhado pelas deliciosas batatas fritas, cortadas aos palitos muito finos características deste restaurante e, muito apreciadas por todos estes jovens fardados de soldados.
Nessa noite os soldados mostravam-se cabisbaixos e tristes, não evidenciando aquela algazarra de alegria contagiante que costumava caracterizar o ajuntamento de tantos jovens rapazes na flor da idade. Todas as conversas em tom pesaroso eram referentes á terrível e sanguinária emboscada e, mesmo entre aqueles que intervieram directamente no combate, as informações quanto ao número de mortos e feridos eram contraditórias.
Na nossa mesa faziam-nos companhia dois conhecidos de longa data do Farsola, o Grilo seu compincha da noite Lisboeta e o Sintra um calmeirão que do alto do seu metro e oitenta, afirmava emocionado mas com voz grossa e convincente.
- Pelo menos seis mortos contei eu, pois nós fomos dos primeiros a chegar e a nossa sorte foi caminhar-mos pela berma da esquerda, aquela que dava para a ravina.
- Ah, pois! Acrescentou o Grilo – A secção do Bandeira progrediu rente ao morro e caíram num campo de minas, que lhes causou pelo menos quatro feridos graves.
Eu ouvia perplexo o relato impressionante desta enorme carnificina.
O Farsola com o seu vozeirão comentava.
- Foi uma emboscada e peras, a fazer-me lembrar aquela que os de Quicabo sofreram na zona das Sete Curvas. É que lá os turras também fizeram um prisioneiro que levaram para o Congo.
- Como tiveste conhecimento disso? Perguntei-lhe curioso.
Então o Farsola contou-nos que tinha recebido uma carta de um seu vizinho de Cascais que fazia parte do Batalhão de Caçadores 3838, onde descrevia a violenta emboscada que tinham sofrido na zona das Sete Curvas entre Quicabo e Balacende, na qual perderam a vida quatro soldados e também um fora feito prisioneiro. O seu amigo também se lamentava que este Batalhão tinha sofrido este revés quando se encontrava praticamente no final da comissão.
Devido ao segredo militar em ambiente de guerra, agravado pela omnipresente censura, tanto em Lisboa como em Luanda e mesmo até nós próprios aqui no mato, não tínhamos conhecimento destes trágicos acontecimentos, o pouco que íamos sabendo era através da troca de correspondência com os nossos amigos espalhados pelo imenso território Angolano e, nas outras frentes de guerra em Moçambique e na Guiné.
Também tinha sido através de uma carta enviada pelo Batata, meu colega de trabalho no Arsenal do Alfeite, que eu tomara conhecimento de que a Guiné declarara unilateralmente a independência em Setembro de 1973 numa cerimónia realizada no seu interior, mais propriamente em Madina do Boé. O Batata ainda me contara que a situação na fronteira norte estava de tal modo complicada, que a guarnição de Guileje tinha sido obrigada a abandonar a sua posição e, fugir a corta mato até á próxima base das nossas tropas chamada Gadamael.
Após este desaire o governador da Guiné, General Spínola ordenara a prisão do comandante de Guileje, á boa maneira de Salazar aquando da invasão de Goa pelo exército da União Indiana.
MANUEL ALDEIAS

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

CHAMAVAM-LHE VITINHA

Capíulo XV
Chamavam-lhe Vitinha, olhos tristes, cara e corpo de menino, vestido com uma farda de soldado. Chegara aqui ao Quiende na última coluna do MVL há 15 dias. Pelo caminho fora acometido por uma forte crise de paludismo, com febres muito altas, que o obrigara a interromper a viajem e baixar á improvisada enfermaria da base durante cerca de uma semana, o seu estado era tão grave que passara os primeiros dias ligado a balões de soro.

O Vitinha era agora o nosso novo companheiro de viajem e, desconhecia que sofrêramos na véspera uma mortífera emboscada. Esta apenas era do conhecimento dos soldados que participavam na coluna e dos de Quiximba por ser a base mais próxima e onde fora montado o posto avançado de socorro.
Quando lhe relatamos este drama e que o pessoal do Meposo tinham sofrido 6 mortos, 2 feridos graves, 6 feridos ligeiros e ainda dois prisioneiros ficou muito transtornado e, com os olhos marejados de lágrimas contou-nos emocionado que também ele se dirigia para o Meposo em rendição individual, afim de substituir um camarada morto.
O mais recente dos nossos companheiros de viajem fazia-se acompanhar de uma grande mala de madeira, a que chamávamos mala de porão. Este tipo de malas servia para acondicionar os diversos pertences e no final da comissão depois de repleta de produtos de artesanato e outras recordações eram enviadas para a Metrópole no porão de um navio mercante, daí o seu nome.
O novo viajante abriu a mala para me mostrar acondicionado numa caixa de madeira, um gira-discos a pilhas de marca Sharp. Também me mostrou um grande volume de discos de vinil, ao mesmo tempo que me dizia.
- É pena, não podermos ligar o gira-discos. Provavelmente irias gostar de ouvir José Afonso.
- Não me digas que também tens discos do Zeca Afonso – perguntei incrédulo.
- Ah. Pois! Tenho aquele LP intitulado Baladas de Coimbra, que foi proibido pela censura logo após a sua edição e onde ele canta: os vampiros comem tudo, comem tudo e não deixam nada. No entanto não te preocupes, que vais ter oportunidade de ouvir quando chegarmos a São Salvador.
Também me contou que na sua antiga companhia, os soldados se juntavam á sua volta em grandes grupos para ouvirem este cantor proibido e também o padre Fanhais. O capitão da sua companhia propôs-lhe comprar o disco do José Afonso, chegando-lhe a oferecer bom dinheiro que ele nunca aceitou.
Disse-me que esse capitão miliciano se viu obrigado a ingressar no serviço militar, depois de sucessivos adiamentos justificados com os estudos. Estudava em Coimbra quando o ministro da educação José Hermano Saraiva foi vaiado pelos estudantes no seguimento de uma visita á Universidade que fizera acompanhado do Tomás. Ambos foram assobiados e apupados pelos estudantes que tinham sido impedidos de discursar. Como retaliação o ministro acabou com os adiamentos, obrigando os estudantes a incorporarem-se coercivamente na tropa. Muitos deles deram origem aos chamados capitães de proveta ou de aviário, assim chamados na gíria de caserna, por em pouco mais de seis meses passarem de instruendos do curso de oficiais milicianos a capitães comandantes de companhia.
-Estes combates aqui no norte são obra da FNLA, que escorraçou o MPLA para o leste e para Cabinda – disse-me ele, demonstrando profundo conhecimento da situação militar e acrescentando ainda. – O MPLA aqui no norte está confinado a pequenas bolsas e, apenas nas matas dos Dembos. No entanto no Leste para onde encaminhou grande parte do seu esforço de guerra e, apesar de constantemente perseguido pelas nossas tropas e até mesmo pela Unita de Jonas Savimbi, continua a fazer grandes estragos, chegando mesmo há poucos meses atrás a derrubar um Heli-canhão na zona de Gago Coutinho.
MANUEL ALDEIAS 

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O CURANDEIRO AFRICANO

Capítulo XIV
O sol brilhava a pique. O calor tórrido e abafado de início de tarde sufocava-nos em cima da caixa de carga da camioneta, que agora lentamente começava a sair do imenso mar verde desta floresta que nos oprimia e fazia sentir pequeninos e insignificantes.
Pela nossa frente estendia-se uma região aberta tipo savana, salpicada de graciosos embondeiros e outras árvores de grande porte, dispersas pelo alto capinzal matizado de tons dourados e pastel, a ondular graciosamente ao sabor de uma brisa leve e sufocante
O nosso ancião que o Farsola ajudara a descer da viatura durante a última paragem, regressava agora apressado transportando nas mãos umas pequenas raízes e algo de aspecto estranho que me pareceu serem pequenos cogumelos.
Avançou para mim dizendo com voz ofegante.
- Toma patrão, bébi nos água. Ser bom prós caganera.
O Farsola ao reparar na minha indecisão, retirou aquela miscelânea das mãos do ancião introduzindo-as de imediato na água morna do cantil, agitou bem o conteúdo que me entregou dizendo.
- Bebe Mike. Pior que o que estás agora, não deves ficar.
Com repugnância bebi uns tragos daquele chá morno e asqueroso.
De imediato notei que os vómitos pareciam querer dar-me tréguas e instigado pelo ancião fui bebendo mais e mais até esvaziar o cantil e, a diarreia e os vómitos cessarem na totalidade.
Com o sol de fim de tarde a pintar de vários tons vermelhos e dourados a linha do horizonte, chegamos a Quiende ultima base das nossas tropas antes de São Salvador. Aproveitando a curta paragem, o Farsola foi de corrida encher de novo os cantis e ao chegar junto a mim aconselhado pelo ancião preparou nova infusão daquele produto milagroso que estendeu na minha direcção ordenando.
- Toma. Bebe mais este cantil de chá, que ao chegarmos a São Salvador tens que estar em forma para bebermos umas bujecas fresquinhas.
Agora já sem relutância bebi mais uns tragos daquela misericordiosa mistela que tanto bem me estava a fazer.
Anoitecera muito rapidamente como acontece nestas regiões tropicais e a noite apresentava-se escura como breu, fervilhando de inúmeras estrelas que brilhavam docemente na noite sem luar e livre de poluição.
Este circo de dezenas e dezenas de viaturas progredia agora muito mais rápido e, sem as constantes paragens que tanto nos haviam atrasado. A estrada encontrava-se desimpedida de minas, graças ao trabalho de picagem efectuado por soldados de outras companhias, desviadas para aqui afim de montarem a segurança do percurso e abreviarem o máximo possível o perigoso trajecto nocturno.
MANUEL ALDEIAS

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Uma lata de sardinhas podres

Capítulo XIII
- Cavalgávamos vagarosamente o vasto oceano verde da floresta, ao sabor dos solavancos da viatura nos inúmeros buracos da picada. Era como se navegássemos no convés de algum pequeno veleiro em pleno mar alto, só que aqui não eram as ondas que nos salpicavam a cara, mas sim as densas ramagens que roçavam os taipais da camioneta.
O meu enjoo começara com uma forte cólica intestinal, seguida de uma repentina indisposição que me levou a colocar a cabeça para fora dos taipais e lançar a carga ao mar. Na boca, nariz e garganta, tinha-se instalado um nauseabundo sabor a sardinhas de conserva podres.
Quando nessa quente manhã abrira a lata de sardinhas em molho de tomate retirada da caixa de cartão da ração de combate, reparara que esta se encontrava um pouco opada e com vestígios de ferrugem no seu exterior, contudo não valorizei estes indícios já que o seu conteúdo parecia estar intacto e em condições. O nosso ancião de braço ao peito continuava a viajar connosco e repartíamos com ele as nossas parcas rações, foi o que aconteceu desta vez e, ele aceitou de bom agrado os dois rabos de sardinha entalados entre duas bolachas de água e sal que lhe oferecera.
Provavelmente por ser mais resistente ou talvez por ter comido menos, o nosso ancião mantinha-se sereno e olhava-me condoído perante o meu estado que lamentavelmente piorava a todo o momento
Os constantes saltos da veículo nos buracos do caminho estavam a tornar-se cada vez mais insuportáveis e a deixar-me o corpo totalmente dolorido, como se tivesse sido pisado e esmagado pelo seu rodado, não controlava os intestinos e ansiava pelas inúmeras paragens para descer até á picada e defecar umas borras negras com um cheiro insuportável, ao mesmo tempo que também vomitava um liquido amarelado muito azedo.
A viagem estava a tornar-se num inferno que parecia interminável, sentia-me febril, com o corpo dorido. A diarreia e os vómitos não cessavam, mesmo depois do estômago e intestinos estarem completamente vazios, o que piorava o meu débil estado.
Ao cabo de algumas horas de suplício já não me encontrava com forças para subir para a camioneta, após as minhas constantes descidas ao improvisado W C, nem tão pouco me resguardava nos arbustos que ladeavam a picada e me transmitiam um pouco de privacidade. Simplesmente descia e agachava-me de cócoras entre os rodados, valia-me o meu camarada que me dava a mão e me puxava quase desfalecido para junto dele
Aproveitando uma das constantes paragens, o Farsola correu ao longo da coluna até encontrar um enfermeiro que trouxe consigo, este muito solicito e compadecido com o meu frágil estado viajou comigo durante 2 ou 3 km, mediu-me a tensão e obrigou-me a tomar 2 comprimidos LM, uns comprimidos tipo aspirina que eram receitados para todo o tipo de doenças, desde simples resfriados até ataques de paludismo, escusado será dizer que devido ao meu estado logo de seguida os vomitei.
O prestável do enfermeiro nada mais poderia fazer por mim e disse-me enquanto descia com a bolsa ás costas.
- Se entretanto não melhorares, assim que chegarmos á próxima base tomarei providencias para que sejas colocado a soro. Como tu sabes aqui não tenho condições para tratar de ti.
Ainda balbuciei um agradecimento enquanto ele corria para a sua viatura.
Da composição de cada grupo de combate com cerca de trinta homens, alem de um operador de transmissões com o seu rádio Racal Tr 28, também fazia parte um enfermeiro com a bolsa de enfermagem equipada com alguns utensílios de primeiros socorros, como gaze, ligaduras, injecções de soro anti-ofidico e para o paludismo, os ditos comprimidos LM e pouco mais. Quando nas extenuantes operações apeadas que poderiam durar vários dias, esta bolsa seria carregada ás costas, juntamente com o saco das rações e arma com respectivos carregadores.
MANUEL ALDEIAS