sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Memórias de outrora VII


(Continuação)
Com o clarear da manhã, os Flechas até aqui deitados e imóveis, começaram a sentar-se no chão e a comerem em silêncio as rações de combate. Eu desloquei-me a rastejar até junto do meu guarda-costas que também se encontrava a fazer parte do círculo de segurança e, pedi-lhe o meu saco de onde retirei uma lata de leite com chocolate. Voltei de novo ao interior do círculo, onde tinha o rádio e a arma G3, quando terminei de beber o conteúdo da lata, com a faca de mato escavei um pequeno buraco onde a enterrei, como via fazer a estes meus novos camaradas. Os Flechas alem de caminharem furtivamente pela mata, também procuravam não deixar vestígios da sua presença, apenas falavam o indispensável e simplesmente segredando, geralmente comunicavam por gestos, não fumavam, nem transportavam objectos ruidosos ou luzidios como anéis ou relógios.
Já o sol começava a despontar no horizonte, quando repentinamente, se ouvem fortíssimos rebentamentos de granadas de morteiro 82 e de RPG 2 a cair com violência no cimo daquele primeiro morro, onde nós tínhamos dado a entender que iríamos pernoitar.
O comandante Palacassa deslocou-se até junto de mim e orgulhosamente afirmou.
- Está a ver! Devido às manobras do avião, os turras detectaram-nos. Seguiram-nos, mas caíram no engodo.
Eu continuava estupefacto e aterrorizado assistindo àquele medonho espetáculo enquanto ele adiantava.
- Daqui em diante não podemos facilitar. Caminharemos sempre pelo interior da mata
Palacasa ex-chefe da FNLA, comandara durante algum tempo a importante base deste movimento em Kinkuso na Republica do Zaire.
Devido a incompatibilidades com Holden Roberto, alguns dos seus familiares diretos foram perseguidos e mortos, contudo ele conseguira fugir e apresentara-se às autoridades Portuguesas que o integraram como comandante de vários grupos de Flechas, a partir daí o comité revolucionário da FNLA acusara-o de alta traição e colocara a sua cabeça a prémio.
De etnia Kikongo aprendera a ler e escrever numa missão protestante no norte de Angola, ao alistar-se na FNLA, fora enviado para a China, país onde frequentara vários cursos de guerra subversiva. Era um homem bastante cruel, que se fazia impor pela força, agredindo por diversas vezes os seus soldados Flechas, como eu tivera oportunidade de observar quando fomos sobrevoados pelo avião. O inspetor também me confidenciou que ainda há pouco tempo assassinara um soldado Flecha, que se tinha negado a cumprir uma ordem sua.
Comentava-se que não fazia prisioneiros e nutria um ódio mortal pelos seus antigos camaradas. As autoridades Portuguesas temendo que poderia liquidar o alto quadro que agora iríamos aprisionar, decidira integrar nesta operação o Inspetor da PIDE/DGS que era seu superior hierárquico.
(Continua)

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

MEMÓRIAS de OUTRORA VI

(Continuação)
A avioneta DO 27 armada com lança granadas foguetes sob as asas aproximava-se velozmente, enquanto eu através do rádio AV P1 conhecido entre nós por Banana, tentava a todo o custo entrar em contacto com o piloto. Tarefa ingrata e muitas vezes impossível devido à fraca potencia deste pequeno rádio, agravado pelo facto de nem sempre os aviões terem o rádio de bordo sintonizado na frequência comum ao exército, neste caso o canal II.
- Pássaro. Pássaro. Aqui cobra, escuto.
Gritava eu para o rádio, mas em resposta apenas ouvia um ruído enervante parecido com o fritar de batatas.
Quando já todos desesperavamos e, com a avioneta praticamente na nossa vertical, por fim o piloto ouve-me e responde
- Cobra. Aqui pássaro. Info se necessitam apoio, escuto.
- Negativo. Agradeço afastamento, rápido. Terminado.
A DO27 retomou de imediato a sua rota, mas no entanto já tinha efetuado um circulo sobre nós. Com todas estas manobras provavelmente o inimigo já nos tinha referenciado e o efeito surpresa sido quebrado.
Para evitar possíveis emboscadas ou minas armadilhadas, uma vez que presumivelmente estávamos detectados, Palacassa decidiu deixarmos o trilho e seguirmos abrindo caminho à catanada através de uma mata próxima. Era um trajecto difícil e extenuante mas muito menos perigoso.
Ao por do sol saímos dessa terrível mata e iniciamos a subida de um pequeno morro apenas coberto de capim rasteiro, chegados ao cume os Flechas dispuseram-se num círculo de segurança e preparamo-nos para pernoitar. No entanto e como acontece nestas latitudes rápidamente escureceu, então Palacassa ordenou que voltássemos a descer o morro e que subíssemos a um outro próximo.
O curto trajecto foi percorrido muito lentamente, o céu estava limpo e muito estrelado, mas a lua ainda não tinha nascido e a escuridão era total, para não nos perdermos seguíamos agarrados ao lenço preso no cinturão do camarada da frente.
Chegados ao cume deste morro, de novo os Flechas se dispuseram em círculo. Dentro dele apenas permaneci eu, o inspector e o comandante Palacassa.
Esta era a minha primeira noite em que dormiria na temida selva Angolana. Resolvi enrolar-me na capa camuflada a que chamávamos ponche e deitei-me no chão, tendo o rádio por cabeceira e o céu como tecto. Nesta noite longa de céu limpo e carregado de estrelas, o medo, a apreensão e a incerteza começavam a tomar conta de mim e o meu pensamento vagueava para longe até à distante Metrópole e trazia-me à memória os meus amigos e familiares.
No ano anterior fora obrigado a ingressar no serviço militar obrigatório e, tinha deixado para traz toda uma vida. Agora recordava os meus colegas de trabalho e do Liceu. Muitos destes meus amigos também se encontravam combatendo nesta terrível guerra com três frentes, uns em Moçambique, outros na Guiné e os restantes como eu neste enorme país chamado Angola.
Mantinha correspondência com alguns deles e ia-me mantendo minimamente informado das agruras desta maldita guerra. Guerra que em surdina muitos de nós repudiávamos, assim como a politica colonial e fascista de Salazar e do seu sucessor Caetano. Agora aqui estava eu, um pacífico jovem de vinte anos armado em guerreiro.
Muitos perguntam agora passadas décadas porque não fugíamos para o estrangeiro. Não era nada fácil, apenas aqueles que lá tinham conhecimentos ou familiares se poderiam aventurar a tal façanha e, sujeitarem-se a só clandestinamente e correndo vários perigos, poderem regressar à Pátria a fim de visitarem familiares e amigos. A revolução de 25 de Abril de 1974 estava longe de ser imaginada e apenas depois dela, aqueles poucos que fugiram puderam regressar, agora como heróis.
(Continua)

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

MEMÓRIAS de OUTRORA V

(continuação)
Rumamos durante varias horas na direcção do nascer do sol, percorrendo esburacadas e sinuosas picadas de terra.Cerca do meio-dia, com o brilhante sol Africano quase  a pique, saímos da picada principal e seguimos por um estreito caminho onde mal se distinguiam os rodados das viaturas levando a crer que era muito pouco frequentado.
Após mais de uma hora de caminhada por este atalho e com as viaturas sempre em andamento, saltamos para o chão e embrenhamo-nos rapidamente na densa selva, prosseguindo em fila Indiana.
Na frente desta fila e adiantado cerca de 100 metros seguia um elemento Flecha natural da zona, não ia fardado, mas sim vestido como qualquer nativo local, em lugar da arma levava um arco e flechas.
Caminhávamos em absoluto silêncio, evitando todos os ruídos por um trilho de pé posto muito pouco utilizado, quando ao chegar a um pequeno rio que teríamos que atravessar a vau, encontro à minha espera o inspector sentado num grosso tronco caído e a pintar a cara de preto, com pomada para os sapatos que ia retirando duma pequena lata redonda. Sentei-me junto dele, que me estendeu a mão.
- Pegue nesta lata – disse – pinte bem a cara de preto, pois nós os dois somos os únicos brancos a fazer parte deste grupo.
- Com alguma relutância esfreguei a pomada na cara e como não possuía qualquer espelho, no final perguntei-lhe.
- Que tal? O que acha?
- Formidável! Está transformado num autêntico Flecha.
Não respondi ao seu comentário satírico. Experimentava uma desagradável sensação de medo e sentia um incómodo calafrio que me percorria toda a zona da coluna. Será que iria aguentar esta jornada até ao fim? E quando começassem os tiros?
Após atravessarmos o rio, o inspector acelerou o passo e foi colocar-se no lugar que ocupava imediatamente atrás do comandante Palacassa, ou seja o terceiro da fila. Eu seguia sensivelmente a meio da coluna, lugar considerado o mais seguro. Como a mata que atravessávamos era bastante cerrada, seguíamos muito perto uns dos outros, talvez a uma distância de 2 ou 3 metros. Na minha pegada seguia um Flecha designado pelo comandante Palacassa como meu guarda-costas e com ordens expressas para olhar por mim, não me perdendo de vista qualquer que fosse o motivo. Era um rapaz alto e bastante magro de menos de 20 anos, talvez o mais novo do grupo.
A floresta até ali muito cerrada dava agora lugar a um campo de capim que nos chegava à cintura. Em surdina comuniquei ao meu guarda-costas o medo que sentia por levar o rádio às costas que me identificava como operador de transmissões e, assim oferecer um alvo apetecível para algum atirador furtivo. Muito amavelmente ofereceu-se para ser ele a transportar o rádio, carregando eu em troca com os sacos das rações de combate.
Decorrido algum tempo desta caminhada desaba sobre nós uma forte trovoada, acompanhada de estridentes e ruidosos trovões, parecia que o céu desabava sobre nós, contudo terminou tão rapidamente como começara. Fiquei encharcado até aos ossos, mas os Flechas continuavam impassíveis a sua marcha e eu tinha que os acompanhar. Então lembrei-me que já deveria ser novamente um homem branco, no meio destes destemidos soldados negros, o que me levou a sorrir para mim próprio.
De súbito sinto uma mão no ombro. Era o meu guarda-costas.
- Patrão. Vem avião.
- O que dizes?
- Avião atrás da gente. Olha!
Virei-me para trás, realmente começava a vislumbrar-se muito tenuemente no horizonte um pequeno ponto negro e já se começava a ouvir um ligeiro ruído muito longínquo.
Parecia vir na nossa direcção, voando paralelamente ao trilho, ou melhor na nossa vertical, a continuar nesta rota e ao avistar-nos tomaria-nos por turras e provavelmente seriamos bombardeados.
Os Flechas começavam a mostrar nervosismo e demonstravam intenção de correr a esconder-se numa mata próxima. O inspector juntamente com o comandante Palacassa prevendo que com essa atitude, maior desconfiança provocariam no piloto, ameaçavam-nos, obrigando-os a permanecer no seu lugar.
(continua)





terça-feira, 4 de janeiro de 2011

MEMÓRIAS de OUTRORA IV

(Continuação)
O inspector da DGS, tinha-me convidado para jantar em sua casa. Moamba de galinha e camarão frito com jindungo faziam parte da ementa, tudo isto regado com cervejas cucas.Éramos apenas três pessoas a partilharem esta refeição, eu o inspector e a sua esposa, que era uma bela rapariga. Alta de cabelos compridos negros com cerca de trinta anos, não se levantava da mesa enquanto comia, apenas dava ordens a uma empregada negra que se mantinha de pé atrás de si e que a um sinal seu se deslocava rapidamente até à cozinha onde se deveriam encontrar os cozinheiros e regressava com os respectivos pratos.
Na véspera apresentara-me no gabinete do Major de operações que com voz seca e autoritária me ordenara.
- Amanha cedo, pelas 5 horas da manha, apresentas-te no local habitual de partida das colunas, com os rádios Racal e AVP 1, uma bateria de reserva e ração de combate para 4 dias e, o mais importante - Acrescentou - Guardas rigoroso sigilo desta conversa e de tudo o resto. Alguma objecção?
- Não senhor meu Major respondi pouco à vontade.
Dando cumprimento às ordens do Major, a meio da tarde e debaixo de uma forte trovoada chegava ao Caxito. Apresentei-me completamente encharcado ao inspector chefe da Brigada da PIDE- DGS. Este homem de trinta e poucos anos, bastante moreno, sensivelmente da minha altura, mas bastante entroncado, usava um pequeno bigode quadrado a meio do queixo, tipo Hitler.
Contrastando com a sua aparência, era de uma amabilidade extrema para comigo, emprestou-me um dos seus camuflados enquanto mandava lavar e colocar a enxugar o meu. Dentro da sua larga roupa em que deveria parecer um palhaço, decidi inciar um passeio pela pequena povoação.
Aqui no Caxito encontrava-se instalada uma Brigada da DGS (Direcção Geral de Segurança) comandada pelo meu anfitrião, ex-oficial miliciano do nosso exército e que detinha sobre as suas ordens um grupo de 30 Flechas.
Os Flechas eram compostos na sua maioria por ex-guerrilheiros, aprisionados ou apresentados às tropas Portuguesas, integravam uma força paramilitar muito eficaz e bastante cruel que actuava exclusivamente às ordens da DGS que os recrutavam e treinavam. Viviam com os seus familiares num pequeno bairro de casas em adobe cobertas com chapas zincadas, construídas por eles próprios com a colaboração da própria DGS que lhes oferecia os materiais de construção, também tinham as suas lavras onde cultivavam mandioca, milho e outras culturas características da região.
Como muitos deles eram ex-guerrilheiros detinham uma larga experiencia da guerra de guerrilha e eram profundos conhecedores da selva. Costumava-se dizer que os Flechas se deslocavam na floresta como nós na cidade.
Normalmente efectuavam operações exclusivamente com elementos seus, sob as ordens directas da DGS, no entanto neste caso e por se tratar de uma operação especial tinha sido pedido a colaboração de um operador de transmissões e daí o meu envolvimento.
No pequeno briefing realizado já noite dentro, nas instalações da Brigada, encontravam-se presentes, alem de mim, o inspector, o comandante Flecha Palacassa e 20 soldados Flechas. Aí tomei conhecimento da missão: um nativo enviado pelo Soba de uma determinada Sanzala informava que um pequeno mas importante grupo inimigo em trânsito iria pernoitar na sua Sanzala daí a três noites, pelo que fora decidido efectuar um golpe de mão com o intuito de capturar de surpresa e vivos esses elementos. Após a captura, o principal elemento desse grupo, um alto quadro da FNLA (Frente Nacional para a Libertação de Angola) seria evacuado em Helicóptero que eu ficara encarregado de pedir através do rádio Racal tr28, enquanto os restantes feitos prisioneiros regressariam a pé juntamente connosco.
No final os Flechas foram armados com espingardas metralhadoras FN e, distribuídas a todos rações de combate. Ninguém mais saiu da instalações até cerca das 5 horas da manhã, altura em que tomamos lugar numa coluna militar escoltada por uma companhia do exército.
(Continua)