quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

MEMÓRIAS de OUTRORA VI

(Continuação)
A avioneta DO 27 armada com lança granadas foguetes sob as asas aproximava-se velozmente, enquanto eu através do rádio AV P1 conhecido entre nós por Banana, tentava a todo o custo entrar em contacto com o piloto. Tarefa ingrata e muitas vezes impossível devido à fraca potencia deste pequeno rádio, agravado pelo facto de nem sempre os aviões terem o rádio de bordo sintonizado na frequência comum ao exército, neste caso o canal II.
- Pássaro. Pássaro. Aqui cobra, escuto.
Gritava eu para o rádio, mas em resposta apenas ouvia um ruído enervante parecido com o fritar de batatas.
Quando já todos desesperavamos e, com a avioneta praticamente na nossa vertical, por fim o piloto ouve-me e responde
- Cobra. Aqui pássaro. Info se necessitam apoio, escuto.
- Negativo. Agradeço afastamento, rápido. Terminado.
A DO27 retomou de imediato a sua rota, mas no entanto já tinha efetuado um circulo sobre nós. Com todas estas manobras provavelmente o inimigo já nos tinha referenciado e o efeito surpresa sido quebrado.
Para evitar possíveis emboscadas ou minas armadilhadas, uma vez que presumivelmente estávamos detectados, Palacassa decidiu deixarmos o trilho e seguirmos abrindo caminho à catanada através de uma mata próxima. Era um trajecto difícil e extenuante mas muito menos perigoso.
Ao por do sol saímos dessa terrível mata e iniciamos a subida de um pequeno morro apenas coberto de capim rasteiro, chegados ao cume os Flechas dispuseram-se num círculo de segurança e preparamo-nos para pernoitar. No entanto e como acontece nestas latitudes rápidamente escureceu, então Palacassa ordenou que voltássemos a descer o morro e que subíssemos a um outro próximo.
O curto trajecto foi percorrido muito lentamente, o céu estava limpo e muito estrelado, mas a lua ainda não tinha nascido e a escuridão era total, para não nos perdermos seguíamos agarrados ao lenço preso no cinturão do camarada da frente.
Chegados ao cume deste morro, de novo os Flechas se dispuseram em círculo. Dentro dele apenas permaneci eu, o inspector e o comandante Palacassa.
Esta era a minha primeira noite em que dormiria na temida selva Angolana. Resolvi enrolar-me na capa camuflada a que chamávamos ponche e deitei-me no chão, tendo o rádio por cabeceira e o céu como tecto. Nesta noite longa de céu limpo e carregado de estrelas, o medo, a apreensão e a incerteza começavam a tomar conta de mim e o meu pensamento vagueava para longe até à distante Metrópole e trazia-me à memória os meus amigos e familiares.
No ano anterior fora obrigado a ingressar no serviço militar obrigatório e, tinha deixado para traz toda uma vida. Agora recordava os meus colegas de trabalho e do Liceu. Muitos destes meus amigos também se encontravam combatendo nesta terrível guerra com três frentes, uns em Moçambique, outros na Guiné e os restantes como eu neste enorme país chamado Angola.
Mantinha correspondência com alguns deles e ia-me mantendo minimamente informado das agruras desta maldita guerra. Guerra que em surdina muitos de nós repudiávamos, assim como a politica colonial e fascista de Salazar e do seu sucessor Caetano. Agora aqui estava eu, um pacífico jovem de vinte anos armado em guerreiro.
Muitos perguntam agora passadas décadas porque não fugíamos para o estrangeiro. Não era nada fácil, apenas aqueles que lá tinham conhecimentos ou familiares se poderiam aventurar a tal façanha e, sujeitarem-se a só clandestinamente e correndo vários perigos, poderem regressar à Pátria a fim de visitarem familiares e amigos. A revolução de 25 de Abril de 1974 estava longe de ser imaginada e apenas depois dela, aqueles poucos que fugiram puderam regressar, agora como heróis.
(Continua)

17 comentários:

Edum@nes disse...

Até parece que não tiveram muito azar. Talvez a presença da avioneta tenha evitado, de certa maneira, uma embuscada por parte das forças inimigas?
Eu, penso que nós fomos para os ex-territórios portugueses de África, não para fazer a guerra, mas sim para evitar que ela progredisse.
Também penso que nenhum de nós, militares que fomos obrigados, seriamos a favor de um guerra, que não fazia qualquer sentido de existir, e só existiu porque o Salazar, não foi inteligente, para, em devido tempo, reconhecer o direito dos povos à sua independência.
Quanto a desertarmos todos para o estrangeiros, e após o 25 de Abril de 1974, regressar a Potugal, para agora sermos todos heróis?
O que não falta é herois em Portugal. Para quê mais?

franciete disse...

Mais uma de tantas lindas narrativas por aqui deambuladas, como deambuladas foram os eternos meses que por lá passaram no mínimo 2 a3 anos.
Felizes daqueles que aqui chegaram para contar a história.
Beijinhos amigos muita paz e muita luz e também muitos anos de boa memória, para nos ir contando a triste vida que por lá passou, são sempre marcas que jamais se esquecem.

Manuel disse...

Correm dos meus olhos
lágrimas de desgosto
Ao ver os rostos das Criança
os pais sendo mutilados
e destruídos pelas minas.
Explodindo a esperança de uma família
de um povo que sofre
Guerra maldita...
As pessoas saber das coisas
Vêem TV, ao almoço e ao jantar
Como nada fosse
Não precisam simplesmente de ler e ver na TV;
Tem que sair, por o pé nesses países em crise.
Acreditar que é possível sem bandeira,
Sem medo, tem que protestar.
A violência nunca leva a nada.
Relatos de guerra são sempre muito tristes.

Carla Ceres disse...

História triste! Os governantes deveriam ser forçados a testemunhar os males que causam. Aguardo a continuação. Abraço!

Graça Pereira disse...

Meu Amigo
Já respirei de alívio ( por enquanto...). A avioneta deve ter ajudado um pouco...penso eu!
No meio do mato as estratégias mudavam rapidamente e tinha que ser mesmo. Penso no inferno que passate e tantos como tu...ainda se tivesse valido a pena!!
Já não há culpados para serem julgados...há apenas vitimas e muitas cicatrizes.
Beijo
Graça

Ana Gaúcha _Professora disse...

VERDADE__""Tem que sair, por o pé nesses países em crise.
Acreditar que é possível sem bandeira,
Sem medo, tem que protestar.
A violência nunca leva a nada.
Relatos de guerra são sempre muito tristes.""

Bom ver vc caríssimo.
Bom Ler vc.
Tenha um Findi Feliz junto
aos teus

bjs ManueL

José disse...

Olá Manuel!
Como a Graça Diz, ainda se tivesse valido a pena, mas hoje ainda somos mal vistos, e esse é mais um fardo que temos que carregar até ao fim da vida.

abraço,
José,

Janaina Cruz disse...

A guerra com suas garras afiadas a segurar entre dedos o destino de heróis que dormiam ao relento, e deixavam muito muito longe todos os sonhos e desejos.

O maior dos medos morrer e matar, ambos são instintivamente bravios ou heróicos...

Abraços Manuel, tuas memórias trazem para nós teus leitores a vida como é em tempos de guerra.

Um ótimo fim de semana pra ti.

Anónimo disse...

Manuel,

Continuo a acompanhar sua trajetória ...


Bjo.

franciete disse...

Olá meu bom amigo, passei em agradecimento e desejando um feliz fim de semana, com beijinhos de luz e muita paz para seu universo familiar.

Maria Helena disse...

Oi Manuel, você foi um combatente guerreiro, eu estou aqui também numa guerra íntima, decidindo o que fazer da minha vida familiar, encaminhado filhos às suas próprias moradias, incentivando a criar seus próprias espaços, para que possam viver da próprias energia. isso tem me consumido um pouco, também estar sem empregada por três meses, numa casa grande, com um esqueleto poroso, me exauri...mas "a vida é um combate que só os fracos abate".Apoiando na fé a vou renovando a alegria, energia, vontade e coragem. Assim estamos aqui mais uma vez fortalecendo a nossa amizade. Hoje deixo uma abraço, paz e amizade.

Maria Rodrigues disse...

Amigo, quanta dor e sofrimento essa guerra causou em tantos homens e em tantas familias que estavam sempre com o coração apertado, sem saber como estavam os seus entes queridos.
Aproveito para agradecer todas as mensagens que tão gentilmente deixa no meu cantinho, e peço desculpa de só poder vir visitar e comentar ao fim de semana, mas durante a semana é quase impossível, pois a minha disponibilidade de tempo é bem pouquinho. Os meus posts embora aparecem quase diariamente, são feitos pela noite adentro que é quando consigo parar as minhas tarefas, depois são agendados.
Desejo um Bom Domingo
Beijinhos
Maria

alma disse...

Manuel,

Ler estas descrições, tão fortemente e estranhamente reais, de uma forma que nos entra, pode ser de guerra, mas a verdade será sempre o maior veículo para contar uma guerra, tão devastadora, tão estupidamente cruel.

bj

Anónimo disse...

Olá, Manuel!

Cá vou seguindo a par e passo esta missão, mato adentro, muito bem descrita, recheada de medos e de perigos, de pensamentos desagradáveis...e de interrogações sobre o que é que andávamos lá a fazer... Dos que foram, porque tiveram que ir; e dos que "fugiram", e mais tarde foram saudados como heróis...
Há tantas formas de olhar para esta guerra, mas há uma conclusão inevitável: os milhares que lá morreram, mais os muitos que de lá saíram estropiados, foi sacrifício inútil, estúpido, em vão...!

Olhe, eu ando às voltas para tentar contar alguns episódios da minha comissão na Guiné; um dia destes vão estar prontos, espero eu...

Abraço amigo.
Vitor

franciete disse...

Que a paz e o amor Divino se façam sempre presentes em vossas vidas,
beijinhos de luz e muita paz.

Janaina Cruz disse...

Obrigada pelo calor de tua visita em minha Esferografia meu amigo.

Heróis são os amigos que desconhecem distâncias e o tempo soe para nos proporcionar felicidades, tu és um amigo herói pra mim Manuel.

Abraços

José disse...

Olá Manuel!
Cá estou mais uma vez, e daqui não arado pé, como mais um português, pelas matas da Guiné.

Saiu isto podia ter sido pior,

um abraço,
José.