O MVL partiu de madrugada, ainda de noite. Esta imensa coluna formada por dezenas e dezenas de viaturas, umas militares outras civis fretadas pela tropa, partia de quinze em quinze dias de Luanda e transportava todo o apoio logístico com destino aos diversos aquartelamentos disseminados pelo mato, e ia deixando pelos acampamentos que ficavam na sua rota os respectivos camiões. Chegada a São Salvador lá bem no norte invertia a marcha e agora em sentido inverso, ia recuperando de novo essas viaturas que voltavam a engrossar a coluna de volta a Luanda.
A protecção estava a cargo das nossas tropas que para o efeito intercalavam entre cada meia dúzia de viaturas, um hunimog com soldados fortemente armados. Á cabeça da coluna seguia uma berliet com apenas o condutor e outro soldado, sentados em cima de sacos de areia, era o chamado rebenta-minas.
Rodamos pela estrada alcatroada até Ambrizete situada na costa Atlântica, onde chegamos já ao fim da tarde, mas ainda a tempo de tomarmos um rico banho na sua maravilhosa praia de areias a perder de vista, banhada por uma luz doirada e cadente do final de dia. E extasiado assisti a um pôr do sol deslumbrante que se aproximava rapidamente do ocaso.
Sobranceiro á praia situava-se o Brinca-na-Areia um grande e conhecido café -restaurante que por ser dia de coluna se encontrava repleto de soldados. Dirigimo-nos para lá, a uma mesa ao fundo encontrava-se o meu colega de transmissões Valinhas, acompanhado do enfermeiro Marialva que iriam a partir daquele local fazer parte da escolta, reforçanda-a.
Ao ver-me o Valinhas chamou-me para a sua mesa e, demonstrando alegria e boa disposição confidenciou-me.
- É pá. Mike, isto das escoltas ao MVL é porreiro.
- Pois é – Disse eu, e indaguei.
- É muito melhor que fazer emboscadas junto da fronteira, não é?
- Se é! Mas o que tem de melhor são estas mariscadas aqui no Brinca -na – Areia.
Juntamente com estes dois amigos empanturramo-nos de cervejas cuca e do belo e apetitoso camarão, que aqui ainda tinha um preço mais acessível que em Luanda.
Bem comidos e melhor bebidos, despedimo-nos dos nossos amigos – Esta seria a ultima vez que os veria com vida, como adiante contarei – e dirigimo-nos para junto da nossa viatura, eu como era hábito fazer-mos nestas circunstancias, deitei-me em cima da capa camuflada com o saco e a arma por almofada e o céu estrelado por tecto.
O Farsola entregou-me o seu saco, pôs a arma a tiracolo e disse-me com a voz entaramelada pela cerveja.
- Guarda o meu saco, que eu vou ver se faço pela vida.
Ainda lhe recomendei.
-Não te metas em sarilhos. Ouvis-te?
Mas ele já se tinha afastado e não me ligou.
Pela madrugada sou acordado com um pontapé no cu, seguido do vozeirão cavernoso e inconfundivel do Farsola que me diz.
- Mike. Vê lá se acordas que os motores já estão em aquecimento e vamos partir - E com um sorriso de orelha a orelha rematou.
- Ganhei uma pipa de massa, a jogar á lerpa. Depenei os papalvos dos maçaricos que vão para Noqui! Os gajos ainda trazem grana fresca do Puto.
- Ai. Sim? interroguei eu.
- Pois é pá! E ainda lhes fanei esta garrafa de água do Puto.
- Não me digas que te meteste outra vez na vermelhinha? Perguntei com ar reprovador.
Não me respondeu. A vermelhinha é um jogo de três cartas da mais pura batota, e consiste em escolher uma dama de um naipe vermelho, de entre as outras duas de naipe preto. O Farsola era exímio a manipular as três cartas, baralhando completamente a vítima que ele pretendia ludibriar, e a quem só deixava ganhar o primeiro jogo a fim de o entusiasmar a apostar mais forte.
Geralmente a vitima apostava o dinheiro e na falta deste os seus pertences. A garrafa de água do Puto a que o Farsola se referiu e me mostrou, era o nome que os indígenas davam á aguardente e terá sido ganha com este jogo.
Era um jogo altamente proibido que quase sempre acabava mal, dando origem a cenas de grande discussão e até de pancadaria, pelo facto das vítimas se sentirem burladas.
Por todas estas razões pouquíssimas vezes presenciei este jogo, que apenas era executado e muito raramente em locais de grande movimento e de passagem, onde ninguém se conhecia.
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